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sábado, 29 de maio de 2010

Dom Delfim, um Bispo, um Educador


Foto: Dom Delfim Ribeiro Guedes


Sérgio França Filho prepara justa homenagem a um dos mais destacados vultos da história do município e nos pede algumas palavras sobre a magna figura de Dom Delfim Ribeiro Guedes, o primeiro bispo de Leopoldina.

Dom Delfim esteve à frente da diocese de Leopoldina de 1943 a 1960, ano em que nos deixou para passar à condução da diocese de São João del-Rei.

Foi um religioso de múltiplas virtudes e grande carisma, aguda visão humanista, incansável no atendimento ao extenso território do bispado leopoldinense, abrangendo 57 paróquias em 33 municípios, a saber: Leopoldina, Além Paraíba, Argirita, Astolfo Dutra, Barão de Monte Alto, Cataguases, Dona Eusébia, Estrela Dalva, Eugenópolis, Guarani, Guidoval, Guiricema, Itamarati de Minas, Laranjal, Miradouro, Miraí, Muriaé, Palma, Patrocínio do Muriaé, Pirapetinga, Piraúba, Rodeiro, Rosário da Limeira, Santana de Cataguases, Santo Antônio do Aventureiro, São Geraldo, São Sebastião da Vargem Alegre, Tocantins, Ubá, Vieiras, Visconde do Rio Branco e Volta Grande.

Para os católicos, os bispos sucessores dos apóstolos, recebem com a ordenação episcopal a missão de santificar, ensinar e governar, a eles confiada no âmbito de uma circunscrição definida, que tanto pode ser uma diocese, uma arquidiocese ou uma prelazia.

O episcopado é o último e supremo grau do sacramento da ordem. Aos bispos compete ministrar o sacramento da ordem de modo exclusivo e também, na Igreja Latina, o sacramento da crisma. Ordenar presbíteros e diáconos, bem como conferir ministérios são funções exclusivas do bispo.

Segundo o Código de Direito Canônico, "os Bispos que, por divina instituição sucedem os Apóstolos, são constituídos, pelo Espírito que lhes foi conferido, pastores na Igreja, a fim de serem, também eles, mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado e ministros do governo." (Cân. 375 §1)

Ao garoto que fui, na década de 50, Dom Delfim parecia ser um sacerdote de hábitos reclusos. Não saia muito do Paço Episcopal. Praticamente, só era visto nas cerimônias religiosas.

O Colégio Leopoldinense, onde estudei de 1950 a 1957, pertenceu à Diocese de Leopoldina na maior parte desses anos e tinha o nosso estimado Monsenhor Guilherme de Oliveira como diretor. O Bispo, Dom Delfim, entretanto, que eu saiba, não visitava o educandário. Pelo menos jamais o vi por lá nos sete anos de meu curso secundário.

Uma única vez na vida posso dizer que vi Dom Delfim bem de perto. Foi pelos meus 9 anos quando recebi dele o sacramento da crisma, na Catedral.

Lembro-me das duas alas de meninos e meninas ao longo do corredor central da igreja, com seus padrinhos e madrinhas, e o senhor Bispo progredindo vagarosamente pelo meio, assinalando uma cruzinha de óleo na testa de cada criança. O choro da meninada ecoava na abóbada altíssima. Eu, já grandinho e protegido por minha madrinha, Maria Oliveira do Vale, sentia-me seguro, não chorava.

A doutrina católica ensina que através da crisma recebemos os dons do Espírito Santo: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, piedade, ciência e temor de Deus. Dons que, em abundância maior ou menor, nos aproximam da vocação humana da santidade.

É certo que nem sempre logramos vivenciá-los convenientemente no mundo diversionista e capcioso em que vivemos. De minha parte, se não cultivei em plenitude tão altas virtudes, não terá sido por insuficiência das mãos sagradas que me ungiram naquele dia.

Sobre a humildade e os hábitos despojados de Dom Delfim, tenho o testemunho presente de meu colega de Curso Colegial Clássico e, depois, de advocacia no Rio de Janeiro, Enock Fonseca (filho do professor de contabilidade, Tenente Enock).

Enockinho, como sempre o chamamos, foi seminarista em Leopoldina e conta que Dom Delfim usava roupas simples, algumas bem velhas e acabadas. Presenciou, certa vez, no Palácio Episcopal, o Bispo absorto em seus pensamentos, ou talvez em orações, aparando distraidamente algumas linhas soltas, desfiadas, do punho de sua batina.

O Prof. Oíliam José, à página 44 do livro “Lições e Recordações”, Ed. do Autor, 2002, Belo Horizonte, MG, tece importantíssimas considerações sobre os “heróicos esforços” do bispo Dom Delfim Ribeiro Guedes, junto aos governadores de Minas, Juscelino Kubitscheck e Clóvis Salgado, e junto a deputados estaduais, para obter a estadualização do Colégio Leopoldinense e, com isto, garantir ensino ginasial a toda juventude de Leopoldina.

Não foram poucos os obstáculos a superar – diz o Prof. Oíliam – para que as autoridades aprovassem a compra do Colégio. A maior delas teria sido a falta de recursos financeiros por parte do erário estadual.

Sem embargo, a assunção do Colégio Leopoldinense, pelo Estado, se deu aos 14.02.1955, vindo a escritura de Compra e Venda do educandário a ser firmada em 7.12.1955.

Transferido ao Estado, o Colégio passou a denominar-se Colégio Professor Botelho Reis, depois Colégio Estadual Professor Botelho Reis, com a Lei 1.388, de 23.12.1955, assinada pelo filho de Leopoldina, então Governador do Estado, o médico Clóvis Salgado da Gama. Este, na qualidade de Vice-Governador, assumira a chefia do Executivo Mineiro em 1955, ocasião em que Juscelino Kubitschek precisou desincompatibilizar-se para viabilizar sua candidatura à Presidência da República.

Temos, portanto, que foi graças à visão sociológica e humana de homens como Dom Delfim, Mons. Guilherme e Clóvis Salgado – mas, notadamente Dom Delfim - que um colégio que antes, por ser particular, só tinha condição de oferecer instrução a alunos cujos pais detivessem recursos, a partir da estadualização passou a receber toda a juventude leopoldinense, independente da condição econômica.

Em crônica mais ou menos recente, publicada no jornal LEOPOLDINENSE, dissemos que, nós, ex-alunos da fase anterior à estadualização do Colégio, fomos testemunhas dessa nefasta realidade social. Não havia em Leopoldina, como certamente ocorria em outras cidades de igual porte no país, educação secundária para a juventude pobre. Ficava ela restrita à instrução primária.
Até os derradeiros anos da década de 1950 os colégios secundários da nossa região resultavam ser “colégios para ricos”, como tal entendido “aqueles que podiam pagar” os altos custos de uma instituição de âmbito regional, com instalações de ponta e professorado de alto nível. Se isto, por um lado, valorizava e projetava Leopoldina como um dos berços da cultura no Estado, por outro resultava na franca negação do direito de instrução secundária a filhos de famílias pobres.

Tal realidade só vem exaltar, da perspectiva histórica que o tempo hoje nos faculta, a grandeza humana do nosso primeiro Bispo, Dom Delfim Ribeiro Guedes. Vemos com absoluta clareza que ele soube discernir muito acima dos interesses estritamente materiais ao decidir que só o Estado de Minas haveria de fazer aquilo que a pequena Diocese de Leopoldina não tinha condição econômica de cumprir: patrocinar o ensino secundário para toda a nossa juventude.

Decidiu passar à propriedade do Estado o enorme patrimônio imobiliário do Bispado – com seu intangível histórico de valor incalculável, como um dos mais conceituados estabelecimentos de educação do país – por valor bem abaixo do comercial, exatamente por priorizar as necessidades de nossa juventude pobre, sem opção de estudo.

O preço que a Diocese recebeu pela venda do Colégio – afirma o Prof. Oíliam José, no livro acima citado - foi quase que totalmente consumido nas indenizações trabalhistas ao professorado e ao pessoal administrativo.

A grande obra do nosso primeiro bispo estava realizada e sua memória permaneceria indelével no coração e na memória do povo de Leopoldina.
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE)

Vem Dando nos Jornais

***
Março, 1996.

Clepto, do greco klépto = Roubo, roubar; Cracia, do greco krátia = Governo, autoridade; CLEPTOCRACIA = Governo de ladrões (fonte: Dic. Aurélio).
Tudo por conta dos relatórios das CPIs. As provas nos inquéritos parlamentares dão conta de que não há muita falsidade nas acusações recíprocas entre petistas, peessedebistas e pefelistas. É tudo verdade. O que nos leva a outra realidade terrível. O Brasil saiu de uma ditadura, no final do governo Figueiredo, e entrou numa CLEPTOCRACIA desvairada.

Governo Itamar à parte, a truculência deu lugar à ladroagem. Confesso a que não tenho saudade da ditadura. Mas tenho pena deste Brasil vítima do baixo estrato moral de grande parte de seus homens públicos. E, claro, da estupidez incomensurável do povo infeliz que os elege. Aliás, a maneira desastrada como o povo brasileiro escolhe representantes é nossa melhor garantia de horizontes nublados por longos anos.

Constrange ver, no noticiário, partidos políticos comportando-se como facções criminosas. O PT que emerge das CPIs em andamento, com valerioduto e cuecas recheadas, mereceria melhor classificação? E o PMDB da suspeitíssima contumácia no Ministério dos Transportes, do Estevão, do Governo Sarney, do Newtão, do Quércia, do Genebaldo, do Barbalho, do Zé Geraldo “Quinzinho”? E o PFL da grana de responsa nas burras da Roseana, das “loterias” do João Alves, do painel eletrônico do ACM avô, do Fiúza, da fidelidade a Collor/ PC até o derradeiro instante? E o PTB do Jéferson, do Queiroz, da Sra. Cândido? E o PSDB do Senador Arruda, da campanha do Azeredo, do governo FHC nas privatizações opportunityscas do Mendonça de Barros ao limite ricardiano da responsabilidade? E o PL do Mabel, do Costa Neto, do Bispo Rodrigues? Ó tempos, ó costumes!

Não há exagero em dizer que as próximas eleições se resumirão a uma luta entre amigos do alheio para definir quem pilhará cofres públicos nos quatro anos seguintes. Ou seja, votaremos pela permanência de ladrões ou pelo rodízio entre eles. Uma escolha entre “o que aí está" e o "que aí esteve".

Vira e mexe a Previdência volta ao noticiário. Previdência toca no futuro, no bolso, na saúde e no estômago de cada um. Mesmo lembrando que “no longo prazo estaremos todos mortos”, incomoda o temor de que, antes, possamos conhecer a miséria e o abandono. Uma previdência falida e sem perspectivas de sustentação é ameaça de Dâmocles. Pelo que se sabe a população economicamente viável nos países civilizados vem tendo um filho por casal, no máximo dois. Num mundo cada vez mais competitivo, como esses (poucos) filhos irão prover os custos previdenciários dos pais – cuja longevidade aumenta? Complicadíssimo! A ameaça é de que os pais de hoje envelheçam em Asilos de baixo nível, pois os salários correntes mergulham a níveis asiáticos. Um “lugar ao sol” para nossa juventude é cada dia mais problemático.

Há poucos dias, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PC do B - SP) depois de almoçar com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em Viçosa, Alagoas, por ocasião do Natal, saiu com este comentário: - “De tanto falar de política, ele parecia Lázaro escolhido por Cristo para ressuscitar”.

Vê-se que nossa Câmara de Deputados não é bem servida de presidentes, ultimamente. Se depois de almoçar com um homem público do nível de FHC, Aldo foi capaz de tal grosseria, ele carrega, para mim, uma virtude e um defeito. Como virtude, a verve - sem dúvida notável; o defeito seria a falta do legado doméstico do "berço" e seus consectários de natureza ética.

A CPI das privatizações, a ser instalada possivelmente nesta semana, é promessa de mais complicação e menos governo. Há diálogos telefônicos gravados e não contestados em sua essência relacionando passagens de Pérsio Arida (do Opportunity), Elena Landau (ex-diretora do BNDES), Luiz Carlos Mendonça de Barros (ex-ministro das Comunicações) e Lara Rezende por órgãos estatais e por empresas privadas com interesse financeiro direto nas privatizações.

O nivelamento por baixo, feito principalmente pela TV quando deixa que o grande público, via institutos de pesquisa, lhe fixe a pauta dá que pensar: - Quem está educando a quem? A TV educa o povo ou o povo “educa” a TV. Veja essa interessante minisérie “JK”, da Globo.

Para contar a história de um grande estadista já enfiaram, em pouquíssimos capítulos, três cenas de sexo explícito (incluso uma de estupro não convencional) e um altíssimo percentual de cenas de bordel. Tudo para agradar o grande público em cima da propalada natureza boêmia do grande estadista. Dá pra elogiar?

E a faixa presidencial? Você acha que ela poderia ser confeccionada num barracão de Escola de Samba? Quantas confecções e mestras da alta costura brasileira não dariam tudo para passar à história oferecendo, gratuitamente, essa faixa? Mas, não, tem que ter “concorrência” e altos pagamentos em espécie...

E tome noticiário do Oriente Médio! Entendo, até prova em contrário, que Israel/Palestina têm importância estratégico/militar para os Estados Unidos. Mesmo assim, o espalhafatoso destaque que nossa imprensa dá a cada incidente de rua ocorrido por lá me parece mais um macaqueamento de noticiário alienígena. O território geográfico de São José do Rio Preto, SP, é muito mais importante para o Brasil e eu nem sei quem é o prefeito de lá.

Vi na TV o Sr. Rodrigo de Rato, diretor-gerente do FMI, dizer:

“O que posso dizer é que o Brasil não tem há mais de uma geração uma oportunidade tão boa como tem hoje de assentar-se num caminho de crescimento. A economia brasileira é dinâmica, com um futuro promissor. Crescerá mais em 2006 do que cresceu em 2005, com menos inflação, custo menor de sua dívida, menos pobreza e mais emprego. Isso foi obtido depois de muitos esforços, mantendo uma política macroeconômica que garante a estabilidade. Creio que é do interesse dos brasileiros não perder tudo o que foi alcançado e continuar trilhando o caminho de uma economia que dará resultados cada vez melhores. (...) Queria lembrar que, em outros momentos em que o ambiente internacional foi favorável, o Brasil não se beneficiou da mesma maneira. É verdade que hoje a situação internacional é mais favorável, mas também é verdade que os brasileiros fizeram muitas coisas na direção correta para colher os benefícios”.

Nada mais claro: o diretor do FMI está com o Palocci e não abre. A única coisa que se pode dizer, como crítica ao PT, é que nesse terreno o governo fez o que o PSDB também faria. Isto é, na área econômica o governo tem sido continuísta. Não é por acaso que o Palocci tem defensores importantes. O que explicaria, ainda, a percepção de que o establishment (leia-se, quem manda no Brasil) confie, hoje, mais no Palocci que no Serra.
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de março de 1996)

Copa das Confederações

***
Vem por aí o título da Copa das Confederações.
Os jornais estão mostrando, na primeira página, fotos maravilhosas dos torcedores da África do Sul, fazendo festa nas arquibancadas para os jogadores do Brasil.

Dá orgulho ver que nossos atletas são amados lá fora. Sobretudo num país como a África do Sul, que conheceu um racismo rancoroso, o chamado “Apartheid”, uma desumana separação dos indivíduos, pela raça e pela cor, em duas classes de cidadãos.

Causa júbilo constatar que nossa democracia racial faz bem, é exemplo, e alegra as pessoas em todo o mundo.

Sem falar na qualidade, na beleza e no encantamento de nosso futebol, cinco vezes campeão do mundo! Todo mundo tenta, mas só o Brasil é penta! A seleção brasileira merece aquela festa.

Lembro-me de quando o Brasil ganhou nosso primeiro título mundial, em junho de 1958, na Suécia. Eu era recém saído do exército e morava no Rio de Janeiro havia, apenas, sete meses. Fazia o curso pré-vestibular.

Quando o Brasil ganhou Copa na final, contra a Suécia, o Rio explodiu em carnaval. No dia seguinte, fomos, eu e alguns amigos de nossa República de Estudantes, no Bairro da Glória, para o Aeroporto do Galeão, esperar o "scratch" chegar. Na época não se falava SELEÇÃO, falava-se ESCRETE.

Vimos cada jogador subir no carro dos bombeiros. Didi, Vavá, Pelé, Garrincha... Quando o caminhão vermelho se moveu, de sirene ligada, a turma disparou: Viaduto da Ilha, Av. Brasil, Av. Pres. Vargas, Rio Branco, Pça. Paris, Largo da Glória, Rua do Catete, Palácio do Catete. Em todo o percurso, gente apinhada dos dois lados das ruas. Acredito que dê uns 15 ou 20 km. Não sei bem.

Sei que Antonio, um colega que fez todo o percurso correndo, acabou com a sola do sapato e assistiu, descalço, ao JK receber a seleção num palanque de madeira armado em frente do Palácio do Catete. Discursos, abraços, gritos, lágrimas.

Foi um momento marcado em minha vida. Jamais o esqueci.

É bonito ver, hoje, depois de tantas glórias – na não apenas nós, mas o mundo inteiro conhecer, admirar e gritar o nome de cada jogador brasileiro.
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(Publicado no jornal LEOPOLDINENSE de 15.06.2009)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Calangos do Tio Candim #

Fevereiro, 2004


Arte: Luciano Meneghite

Levanta do toco, cumpade,
num garra de trançar cesta,
cê quando senta no toco
dá de cantar coisa besta.

Eu quero é cantar calango,
debaixo calango dá,
eu quero é jogar de beque,
que é a defesa do lugar.

Totonha não quer que eu bebo,
Chiquinha compra e me dá,
desaforo de Totonha,
de querer me governa.

Ah, sim, mas não é por mal!
Ah, sim, mas não é por mal.
É meu tino musical,
é só meu tino rural.

Alguém por aqui me dá nova
dum amor que já foi meu,
o dono andava sumido
agora já apareceu.
Cabra que tiver com ela,
se for home de opinião,
sabendo que eu tô de volta,
não larga mais o facão.

E se for um poeta
que não tenha medo da morte
nem de morrer faça conta?
Se quer morrer feito macho
um larga as faca de ponta.

Boi erado é boi de coice,
boi mais novo é boi de guia.
Nunca centrei bola alta
porque o beque rebatia.

Buraco na pedra é loca,
gancho no pau é forquia,
peguei na perna da dona
 pensando que era da fia,
perna de dona é asprenta,
perna de moça é macia.

... Ih, Trajano, eu quais que afoguei, Trajano!
Quando sartei fora d’água já tava perdendo o forgo,
a visão ficando binubrada,
os ói vermeio que nem uma baeta.
Trajano, Trajano!
E os meus ói que ficou tudo cheio de areia!

Há uma vaca no Rio Preto
que parece que tá encantada,
tem três dia não come,
não tá gorda nem magra.
Lá em baixo essa vaca deu um berro,
arrebentou cerca de arame
e quebrou um portão de ferro.

Cavalo velho eu acudo
com rapidez e abundânça
depois que atola no brejo
leva tudo as traficança.

Quem quiser me dar comida,
dê no prato carculado,
se for bão eu como tudo,
se não for deixo um mocado.

Atravessei água na grota
numa bica de bambu.
O bambu apodreceu,
apodreceu que esfumou;
mas a vazão continua
porque a água acostumou.

Chuva no fim do ano
às vez é sorte aparente;
tem o infeliz que não planta
porque comeu a semente.

- Tio Candim, meu preto-velho,
Tio Candim e sua mística,
cantando era prato feito,
num banquete de lingüística.

Lá na roça, os mais antigos,
eram incultos no falar,
mas há muito que hoje é certo,
nascido errado por lá...

Gilberto Freyre (Casa Grande & Sensata) chamou de “Rurbano”, as sobrevivências rurais no espírito urbano e o professor Eduardo Portella, escritor e professor emérito da UFRJ, especula se o atual expansionismo da mídia eletrônica, com seu poder homogeinizador e suas fábricas de sonhos, não vem alterando o peso e o alcance desses componentes culturais. É quase certo que sim. Mas é pra frente que se anda.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publicado no LEOPOLDINENSE de 27.02.2004)

Bom Natal!

***
Leopoldina, dezembro de 2003

Neste Natal, se der pra ti, pensemos um pouco em nossa gente que nada tem. É comum ouvirmos falar que o país tem uma grande “dívida social”... Mas o que vem a ser dívida social? Dívida social corresponde ao crédito dos que não têm, oponível ao débito dos que, moralmente, lhes devem o que têm. Em outras palavras, “divida social” é tudo aquilo que nós, os vencedores (ou quase vencedores) nesta sociedade desigual, devemos àqueles que estão simplesmente perdendo a luta pela sobrevivência.

Franco Montoro resumiu suas preocupações dizendo que mais grave do que o sofrimento dos famintos é a inconsciência dos fartos.

Fala-se muito nas benesses da alta tecnologia, no fenômeno da mundialização, na economia globalizada, na progressiva interdependência das nações. A realidade do mundo, no entanto, mostra que paralelamente à fortuna daqueles que a encontram agrava-se, em todos os continentes, um quadro de desemprego, marginalização e miséria.

Uma quinta parte dos habitantes do planeta – um bilhão de seres humanos - vive na penúria e passa fome. Um terço da mão de obra mundial está desempregada. Mesmo nos países ricos, da América e da Europa, 15% da população vive abaixo da linha da pobreza. Pobres, desempregados, sem-teto, sem-terra, migrantes, meninos de rua, favelados, minorias marginalizadas, discriminados de toda ordem.

É urgente que alguma coisa comece a ser feita no mundo. Como disse, certa vez, o então Presidente da França, Mitterrand, não podemos deixar que o mundo se transforme num mercado global, sem outra lei que a do mais forte. Precisamos repensar esse mundo e introduzir o social entre os pontos maiores de nossas preocupações.

O governo brasileiro está anunciando que teremos um bom ano 2004. Os indicadores econômicos parece que confirmam. Se é assim, ótimo. Eu desejo um excelente 2004 para todos!

Que nós, brasileiros, consigamos incluir o maior número possível de pessoas na bonança que se anuncia.

Antes, porém, que tenhamos todos um bom Natal.
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(Publicada no jornal Leopoldinense de 15 de dezembro de 2003)

Pra nosso Governo

***
(Leopoldina, 30 de julho de 2007)

Todo mundo gosta do Waldir Pires, político baiano simpático e honesto. O maior oponente, naquele estado, do pai de todos os santos, Antonio Carlos Magalhães, falecido nesta quinzena. Mas, realmente, nunca foi feliz na política. Waldir Pires renunciou ao mandato de governador da Bahia para ser candidato a vice na chapa de Ulisses Guimarães, cometendo um erro mortal de cálculo político. Eleição terrível para o PMDB, que acabou sendo polarizada entre Lula e Collor. É agora substituído por Nelson Jobim no Ministério da Defesa, de onde sai vítima da longa crise no setor aéreo que culmina com o maior desastre da história da aviação da brasileira, envolvendo o airbus da TAM. Pires sai do ministério como alguém que foi caçar onça com bodoque de bambu.

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Dando a dimensão do problema nos aeroportos, por pouco Jobim recusa a indicação. Sua mulher, Adriene, resistiu. Foi preciso um telefonema direto de Lula para ela, a fim de “negociar o passe” do marido.
É que, infelizmente, mesmo depois das “desortodoxias” protagonizadas por Jobim quando ministro do Supremo, ele ainda seria um nome maior que o nosso (atual) Ministério da Defesa.
Adriene é mulher inteligente e muito preparada.
Advogada, trabalhou com o ex-ministro Paulo Renato, na redação do programa de governo de Fernando Henrique Cardoso, quando candidato a presidente da República em 1994. Depois, quando Fernando Henrique criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, órgão do Ministério da Fazenda responsável pelo combate à lavagem de dinheiro, Adriene foi nomeada para comandá-lo. Em seguida, foi procuradora Geral do ministério.
Conheceu Jobim quando ele era Ministro da Justiça do governo FHC. Era divorciada. Jobim divorciou-se para casar com ela.

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Há quem veja Jobim como um possível candidato de Lula às sua sucessão. Mas há também quem veja problemas nesta idéia. Dilma Roussef parece destinada a encabeçar a chapa petista ou sair como vice. Dilma nasceu em Minas, mas é gaúcha para efeitos políticos. Ora, uma chapa governista com dois gaúchos é difícil.

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O Governo Lula tem contabilizado gafes. Teve aquela bobagem dita pela Marta Suplicy, com relação às filas nos aeroportos (“relaxa e goza”), a afirmação insensível do ministro Guido Mantega (“não há caos aéreo, há prosperidade no país”) e a vulgaridade do gesto do Marco Aurélio Garcia. Logo o ministro Marco Aurélio, talvez o cérebro mais desenvolvido do governo Lula! Por cima ainda vem condecoração inoportuna, no dia seguinte ao desastre da TAM, exatamente no órgão – a ANAC - que pode ser responsável pela perda de 200 vidas!

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Aliás, a ANAC não regula coisa nenhuma. É uma cópia macaqueada do modelo americano, sem a força que as Agências de lá têm porquanto teúda e manteúda pelas próprias empresas reguladas e fiscalizadas, com suas diretorias comendo na mão de quem os indicou e os mantêm embarcados.
Confiram as "funções do órgão", segundo seus estatutos:
a) manter a continuidade na prestação de um serviço público de âmbito nacional;
b) preservar o equilíbrio econômico-financeiro dos agentes públicos e privados responsáveis pelos diversos segmentos do sistema de aviação civil;
c) zelar pelo interesse dos usuários e consumidores;
d) cumprir a legislação pertinente ao sistema por ela regulado, considerados, em especial, o Código Brasileiro de Aeronáutica, a Lei das Concessões, a Lei Geral das Agencias Reguladoras e a Lei de criação da ANAC."
Ou seja, nada concreto, positivo e factível. Tudo coisa abstrata, intangível.

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O presidente Lula, há dias, soltou uma frase afirmando ter dito coisas, quando sindicalista, que hoje, como presidente, não repetiria. Não me esqueço que, para dizer exatamente a mesma coisa (ou seja, da "responsabilidade com resultados", que todo governante assume) Fernando Henrique Cardoso programou uma concorrida palestra sorbonhesa, se bem me lembro no início de seu segundo mandato, com direito a Antonio Carlos Magalhães e o falecido filho, então presidente da Câmara, sentados na primeira fila meneando positivamente as cabeças – uma erudita alocução à qual não faltaram aspas elegantes para sociólogos como Comte, Weber e Spencer.
Tudo para, em síntese, dizer isto: Discurso de palanque é uma coisa, exercício de uma função executiva ou legislativa é outra.
No primeiro caso, esqueçam o que escrevi (dito por um homem que, no início dos anos 60, traduziu Montesquieu); no segundo, esqueçam o que sempre falei (de cima dos caixotes, claro).

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A surpresa do Lula com as vaias do Maracanã, deveu-se ao fato de que ele vive em Brasília, num ambiente de pensamento oficial. Brasília isola o governante do contato direto com a sociedade livre-pensante dos grandes centros. Submerso naquele mundo protocolar e estanque, de prosa e cochichos oficiais, fica compreensível o susto presidencial diante da chamada galera, em porre catártico de livre expressão. O Maracanã vaia até minuto de silêncio, dizia Nelson Rodrigues. Foi indelicado. O presidente se sentiu como um convidado barrado no baile...
O verso é do Eduardo Dusek numa canção muito engraçada: “Isto é que dá, cê querer freqüentar ...”
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 30.07.2007)

Réu não Bebe Café #

***
Maio, 2010

Acho que vem da Grécia antiga, de lá dos dois mil antes de Cristo, o rifão segundo o qual devemos tratar de maneira diferente as pessoas diferentes. Soa preconceituoso, mas nem sempre é. Não tem sentido, por exemplo, advogados e parlamentares − para ficar no exemplo de duas classes de pessoas muito caras ao coração do grande público − acostumados aos “Vossas Excelências” do dia-a-dia de seus misteres profissionais, dirigirem-se aos porteiros de seus prédios com empáfia do tipo: Sr. Severino, estou viajando hoje, Vossa Excelência, por favor, coloque debaixo de minha porta a correspondência que chegar... Delicado, sim, mas bastante inadequado, se não estamos em Portugal, não acham?

Casos há, entretanto, em que o “tratamento diferenciado” resvala pela humilhação e, aí, torna-se discutível. Aconteceu numa comarca do interior de Minas e eu estava lá.
Conhecido empresário local, titular de considerável fortuna, mas pessoa bastante comunicativa e querida, foi responsabilizado judicialmente pelo atropelamento de uma mulher por um dos muitos caminhões de sua frota.

No dia da audiência de julgamento o enorme ciclo de amizades e pessoas simpáticas ao demandado se acotovelavam no fórum local, menos por curiosidade que por um gesto instintivo do compadrio interiorano.

Importante dizer ainda que Ozório - este o nome do Réu - tinha certa qualidade que o destacava: era um sujeito engraçado, falava rápido repetindo palavras nervosamente, parecendo ao mesmo tempo espirituoso e ingênuo. De ingênuo não tinha nada e era principalmente isto que as pessoas adoravam comentar e achar graça.

Primeira pergunta do juiz:
- O nome do senhor, por favor?
- Ozório, sim, Ozório, é, meu nome é Ozório, Ozório sim senhor... é, é, Ozório...
Os sobrenomes, para ganhar tempo, o juiz preferiu não conferir...

A audiência ia vagarosa, depoimento do motorista, das testemunhas, peritos, etc., quando, lá pelas tantas entra em cena a copeira do Fórum com o cafezinho da praxe. Serviu o Juiz, o Promotor, os Advogados e... o Réu, claro, afinal não estava ali naquele “banco” uma pessoa qualquer. Era o “Seu Ozório”!

Mas no que Ozório pega o pires com a mão esquerda e, com a direita, leva a xícara aos lábios, o juiz berra de lá:
- Pare, pare! Tome essa xícara, Ciléia. Réu não bebe café durante julgamento! Tome a xícara dele.
E o Ozório, obediente, devolvendo rapidinho a louça à bandeja:
- Pois não, Excelência, pois não, Excelência... Réu não bebe café, Réu não bebe café, Réu não bebe café...

Não consigo conter o riso quando esse episódio me vem à mente. Acho-o engraçadíssimo, principalmente por conhecer as pessoas envolvidas. Em meus tratos à bola, todavia, nunca tive certeza absoluta de que a atitude do magistrado tenha sido adequada. Talvez sim.

Para quem acha que o juiz foi pedante além da conta, tente imaginar “uma fotografia”: Juiz e Promotor tomando cafezinho com o Réu antes do julgamento... Esquisito, não é?

Talvez, ali, naquela condição de Réu, o bom Ozório realmente devesse ser tratado da maneira “diferente” como o foi. O juiz terá sido apenas zeloso da liturgia de seu cargo, da reverência devida à Justiça, e, sendo honesto, achou importante “mostrar sua isenção” diante daquela pessoa de nível social e econômico acima da média.

Ou entendeu que viria ao caso salvar as aparências. "À mulher de César não basta ser honesta; tem que parecer honesta."

Muito contrariamente aos cuidados do meritíssimo julgador interiorano, vejam quantos exemplos constrangedores nos oferece o atual governo, lá de sua alta cúpula – quando faz vistas grossas ao exército de “fichas sujas” à sua volta.

Sem a menor cerimônia nomeia, para cargos de fiscalização, pessoas envolvidas com entes fiscalizados, fingindo não dar bola aos conflitos de interesse; negocia apoio com parlamentares, bandidos óbvios; coloca verdadeiras raposas para vigiar galinheiro em órgãos administrativos onde corre dinheiro alto. Simplesmente inexplicáveis são certas nomeações, para Agências Reguladoras, de pessoas provenientes das próprias empresas reguladas. Assim não dá.

A gente sabe que governabilidade se constrói na partilha do bolo. Mas diacho! Qualquer um serve para ser parceiro do governo? Ninguém provoca constrangimento? Minha sugestão é que na hora de confiar a coisa pública e de trazer para junto de si um novo colaborador, o governo tenha em mente a lição do juiz mineiro:
-Réu não bebe café.
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(Publicada a 28.05.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

A Saúde e o Hospital

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Começa nos anos 60, nos governos militares, o processo de socialização dos serviços de saúde, em descompasso com a liberalização dos demais setores da economia, para os quais a opção oficial seria o livre mercado. Passadas quatro décadas, pode-se avaliar hoje no contexto histórico os resultados desta política e como ela interferiu na missão médica.

Antes, o médico era um profissional respeitado na sociedade brasileira, gozando de grande prestígio e usufruindo ótimo padrão de vida, inserido na chamada “elite nacional”. Era uma pessoa que entrava nas casas de seus pacientes, ouvia suas confissões mais íntimas, atuava como transformador de costumes e influenciava no cotidiano social com grande força e respeito. Ou seja - na leitura do regime - um “inimigo poderoso” dos que empolgaram o poder sem compromisso com anseios populares. Um “inimigo a ser destruído" por aquilo que nele mais incomodava, ou seja, seu prestígio junto à população.

Acionado, então, o processo de socialização dos serviços de saúde, o médico é levado a transformar-se de profissional liberal em prestador de serviços para os órgãos governamentais. O INPS é criado através da frankensteinização de antigos órgãos sociais, como o IAPI, IAPB, IAPTEC, IAPC. O médico é chamado a participar desse processo social, que deve ser avaliado num contexto histórico de ausência total de garantias constitucionais, na explicitude de uma ditadura onde qualquer crítica era violentamente sufocada.

Todos sabemos como, no Brasil, os projetos são criados sob inspiração filosófica razoável, para desdobrarem-se em prática detestável. Foi quando o médico se viu isolado, lutando atender a uma demanda por procedimentos de saúde inimaginados, sem qualquer respaldo dos órgãos competentes, responsáveis pela situação. Inicia-se, assim, a guerra declarada entre oferta de serviços (limitada e insuficiente ) e demanda por serviços (crescente e inesgotável). No meio desta guerra, o médico, de um lado; e, do outro lado, o verdadeiro responsável, o Governo, escondendo-se e omitindo-se.

Cunha-se, popularmente, o termo pejorativo médico de INPS, fazendo com que a população passe a ver o médico como o grande vilão, o depositário moral das mazelas dos serviços públicos de saúde. A Imprensa, ávida de adulação ao poder e por vender manchetes bombásticas, entra na campanha difamatória cunhando a expressão “Máfia de Branco”. A população passa a ver no médico um barnabé comodista e omisso, traidor do juramento hipocrático. O sistema alcança seu objetivo: uma classe profissional influente e importante nas transformações sociais é levada ao limbo do descrédito e do enfraquecimento.

O passo seguinte viria a reboque. Aviltamento geral dos salários, desprezo pelas condições de trabalho, perda geral da qualidade nos atendimentos, sobretudo pelo aumento vertiginoso na demanda. Neste ponto o médico é forçado a subdividir-se entre três, quatro, ou mais sub-empregos, em busca de padrão mínimo para sua família.

Chega-se, assim, à década de 80, quando várias discussões em relação à saúde ocorriam no Brasil da redemocratização. Essas discussões resultam no vigente modelo de Saúde Pública inserido na Constituição (Cidadã) de 1988. Vem a lume o SUS – Sistema Único de Saúde – projeto excelente na teoria, mas de problemática execução prática. Seu dístico básico: Saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Uma bela frase, uma idéia irretocável, mas que não resolve o essencial: as fontes de financiamento.

Nessa peleja, temos experimentado, nos últimos anos, queda de ministros, criação de novos impostos, falência de municípios, choques ideológicos, arreglos populistas e demagógicos. O que ninguém vê, ou parece não ver, é o sacrifício dos que foram para o “front” dessa batalha...

Lá estão eles, isolados, estropiados, maltratados - o médico e o paciente - as grandes vítimas da contenda. Filas intermináveis, falta de vagas, mortes desnecessárias, deterioração insidiosa das condições do trabalho médico, pagamentos irrisórios, sensacionalismo barato na mídia, planos de saúde (tabeladores unilaterais dos serviços que compram), e, como nos países adiantados, o risco sempre presente das seguradoras e suas faturas ajuizáveis em cima do risco de erro médico.

É hora da Saúde Pública rever sua rota. Certamente o povo e o médico, os dois principais interessados nessa história continuam perdendo. Quem está ganhando?...
Está passando da hora de resgatarmos a figura do médico, sua importância em nossas vidas, o respeito devido a esse profissional (primeira pessoa a nos segurar pelos braços - antes mesmo que nossas mães), a dignidade de uma profissão milenar, presença diuturna em nossas vidas.

Urge, principalmente, que médico e paciente reatem sua velha e saudável relação. Um depende do outro. Ambos conhecem como ninguém a dor física e o sofrimento do espírito. Ambos estão vivenciando, e procurando compreender, a penúria de um Sistema, conceitualmente bom, mas que está doente e precisa tratamento...

Somente a compreensão do fenômeno, o levantamento cuidadoso de suas causas, pode agregar contribuição construtiva.
Em Leopoldina, a saúde passa pela Casa de Caridade Leopoldinense. É um hospital com modelo de gestão bastante superado. Criado há cerca de 110 anos, ainda abriga em seus estatutos a figura do “Provedor”.

Este administrador, na época em que Leopoldina ganhou a instituição das mãos de seus homens mais ilustres, se explicava por aquele indivíduo que mantinha, que provia, as necessidades do nosocômio, com recursos próprios ou com a soma de recursos da sociedade abastada que liderava. Justificava-se a denominação, Provedor, aquele que provê de recursos.

Hoje, quem provê de recursos os Hospitais é o SUS, através, principalmente, do Gestor da Saúde no município. Ou seja, em última análise, o Sr. Prefeito. Os tempos mudaram. O modelo administrativo do Hospital, entretanto, continua o mesmo instituído por seus fundadores. E é esta particularidade que vem ensejando todos os desentendimentos havidos entre Prefeitos e Provedores do Hospital.

Como no município tudo é política, os Prefeitos, detentores do dinheiro da gestão, não querem que os Provedores “se criem”... Sonegam o dinheiro, até, do Convênio do Pronto Socorro. Simplesmente não pagam. Querem que o Provedor caia do galho até que lá, na Provedoria, se abolete um “amigo do Prefeito”.

Ora, todos os raciocínios apontam, na realidade hodierna, alguma mudança nos Estatutos do Hospital que facilitasse a escolha de Provedores – título que bem poderia ser substituído por “Diretor” - sempre afinados com o alcaide de plantão.

Seria, sim, em princípio, um bem para o Hospital ter seu principal administrador AFINADO com o Prefeito da cidade. Em princípio, porque, na prática, nem sempre. Quando o prefeito não for honesto vai usar a amizade com o Provedor para fazer do Hospital um cabide de empregos...
Se alguém pensa que é simples, engana-se. O problema tem múltiplas faces.
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(Crônica escrita com dados técnicos fornecidos pelo Dr. Lélio Lara Filho - Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 30 de novembro de 2009)

A Festa dos 100 Anos do Colégio

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Muito bonita a reunião de ex-alunos neste último 3 de junho (2006), na comemoração dos 100 anos do Colégio Leopoldinense.

Idéia e obra de alguns abnegados, seria até justo que aqui nomeássemos, um por um, os membros das diversas Comissões organizadoras da festa, mas foram tantos que o risco de omissão recomenda não particularizar. Belo presente que deram a Leopoldina, embora muitos beneficiários diretos - principalmente dos hotéis e do comércio - não entendam, ou fingem que não entendem.

Perfeita a organização do Almoço, do Bate-Papo, da Hospedagem, da Divulgação, do Baile. Palmas para a Tesouraria que nos proporcionou uma bela festa a custo realmente módico e de adesão simples. Só não participou quem realmente não pôde - ou não quis - participar.

Emocionante a Santa Missa celebrada por Pe. Jorge, na Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Pela primeira vez nosso querido Monsenhor Guilherme, agora na companhia definitiva do Pai, deixa de presidir a tradicional celebração.

A confecção das faixas para a rua Cotegipe também merece destaque. Tudo muito pertinente, oportuno e criativo. Tocante e muito justa a homenagem ao Zé Antonio (Beribá), zagueiro e ex-capitão da Liga Esportiva do Colégio Leopoldinense. Ê zaga! Beribá e Coutinho (Manga Rosa).

O Baile no Clube do Moinho com a orquestra maravilhosa de Além Paraíba - aliás, considerada sucessora da Leopoldina Orquestra - quase nos sufoca a boleros-emoção! Que tal a delicadeza deste (?): “ ...faz de conta que eu sou Fred Astaire e você, Ginger Rogers...”

Numa faixa à entrada da praça Gal. Ozório, a exaltação carinhosa da loja “Badu-Lac” (Chiquinho Gama e Sonia) aos apelidos de ontem e de sempre. É gostoso reler: Botão, Bolacha, Micróbio, Crosca, Quequé, Meio-Quilo, Perereca, Caburé, Capiau, Tirolesa, Pond´s, Periquito, Pachá, Coréia, Pelão, Piaca, Piriá, Pipa, Solete, Cocão, Barriga, Boteco, Jumento, Gatinha, Jaburu, Piolho, Cigarrete, Bolinha, Buraco, Boi, Esquilo, Coquita, Sabiá, Dandão, Coruja, Harará, Pereba, Zuzu, Bibita.

Mas saibam que a relação foi apenas enunciativa. Faltou espaço no pano para: Molambo, Pizeta, Coca-Cola, Saratoga, Marreco, Memeluco, Pinguela, Barão, Hermafrodita (culpa do cabelo, o rapaz era “espada”), Pau-de-Fósforo, Gasolina, Pé-de-Pato, Burnete, Gambá, Carneirinho, Papagaio, Remelexo, Patuá, Grilo, Badu, Brotinho, Perigoso, Ximango, Le Pintê, Farofa, Bochano, Canhão, Estaca, Pitanga, Timbuca... E por aí afora.

Como sempre, nossa reunião de ex-alunos é oportunidade rara (a última foi há 10 anos) de rever companheiros e mestres da juventude - irmanados na delicadeza de almas sintonizadas no hábito de cultivar lembranças e amigos - e vivenciar nossa “devoção quase mística de estudantes ao educandário de (nossa) adolescência”, nas palavras muito apropriadas do contemporâneo Deodato Rivera, em sua crônica magistral, “Um Milagre Pedagógico”.

Desta vez, pelos registros do nosso Tesoureiro José Antonio Hipólito Vargas - o Tonico, compareceram 460 devotos. Ex-alunos procedentes dos mais variados rincões deste país, que aqui aportaram por dois dias em nome de uma saudade imorredoura, no anseio de uma re-visita aos bons tempos, na missão de alguns abraços emocionados, na veleidade de nutrir olhos e alma na fotografia de um pátio, de um velho refeitório, de varandas ancestrais, suas colunas dóricas e capitéis, delineados a negro de nanquim e a azul de Parker Quink na memória de cada um deles.

Muitos que não puderam vir, telefonaram, telegrafaram, passaram e-mails. Alguns impedidos por compromissos inadiáveis, outros por razões menos felizes, outros mais por razões até muito felizes. Neste último caso esteve o colega José Heleno Vieira, residente no Rio de Janeiro que, com a esposa Wilma, sempre aparece. Desta vez não vieram porque nasceu, exatamente no dia 3 de junho, a netinha Luísa, filha de Karina. Ninguém mais esquece o aniversário da netinha do Zé Heleno: dia dos 100 anos do Ginásio.

Como vêem, tudo seria festa não tivéssemos que assimilar uma grande perda. Poucos dias antes do Encontro faleceu em Leopoldina, vítima de ataque cardíaco, o nosso boníssimo companheiro Pedro Augusto Arantes. Pedro atuava com inexcedível entusiasmo na Comissão de Festa. Infelizmente, estava escrito numa artéria traiçoeira que ele não participaria da reunião com que tanto sonhou e para a qual tanto contribuiu.

Já que mencionamos acima nosso primus inter pares, Deodato Rivera. Vamos, então, finalizar com algumas palavras dele que muito bem exprimem o que nossos corações avalizam neste momento: seguimos “indissoluvelmente ligados ao nosso Ginásio pelos tanto mais fortes quanto invisíveis, etéreos fios da gratidão e da saudade”.
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 30 de junho de 2006)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Leopoldina, Atenas desde quando? #


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Foto: Professor José Botelho Reis, o diretor mais célebre do "Gymnásio Leopoldinense", e que hoje empresta nome ao educandário.
Quem terá dado a Leopoldina o distinto cognome de “Atenas da Zona da Mata”? Teria sido Dom Francisco de Aquino Corrêa, Arcebispo de Cuiabá, ex-ocupante da Cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, ex-governador do Estado do Mato Grosso, entre 1918 e 1922, quando aqui esteve, em 1927, em visita a Dom Aristides de Araújo Porto, então vigário desta Paróquia de São Sebastião, depois, Bispo de Montes Claros?

Muitos acreditaram que sim. Num luminoso soneto dedicado à nossa terra, escrito em 1927, Dom Aquino Corrêa o conclui com assim exaltar Leopoldina: “És a Atenas da Mata, ó Leopoldina”.

Bem mais recentemente, aqui neste jornal, ao ensejo das comemorações do 27 de Abril de 2006, admitimos a partir das informações disponíveis que Dom Aquino teria sido o autor do epíteto. Na ocasião, deixamos de transcrever o poema do grande sacerdote e intelectual matogrossense. Hoje o fazemos, consignando que o soneto, intitulado “Leopoldina”, de Dom Aquino, está à página 109 do livro “Poética Nova et Vetera”, vol. I, Tomo III.

Com referência expressa à composição de Aquino, Leopoldina voltou a ser homenageada em versos magistrais, datados de 1950, de autoria de José Ribeiro Leitão, ex-pároco da Igreja do Rosário, jurista e ex-juiz federal, recentemente falecido em Brasília. Vejam os dois sonetos:

Leopoldina

Dom Aquino Corrêa (1927)

Quando ti vi, a noite amortalhava
Lado a lado, teus altos horizontes,
Mas um clarão de luz serena e flava
Irrompia dos vales pelos montes.

Era a luz misteriosa, que irradiava
Dos teus colégios, onde as róseas frontes,
A tua mocidade imerge e lava,
Do saber e do bem nas sacras fontes.

Mais glórias para ti, a escola encerra,
Que os cafezais em flor, cobrindo a terra,
De véus de noiva, ao sol, sobre a colina.

E assim, coroando com os florões do estudo,
O teu nome que vale um nobre escudo,
És a Atenas da Mata, ó Leopoldina.

Leopoldina

José Ribeiro Leitão (1950)

Ao pé da serra serpeava um rio,
Donde o Puri, libérrimo e nú,
Ao ver chegar o branco, então fugiu,
p’ra nunca mais voltar ao Feijão-Crú.

Ficou o branco, que aceitou com brio
Vencer o tempo e a onça e o urutu
Tudo mais que lhe fosse desafio,
Até surgir o arraial do Feijão Cru.

Com gerações de gente intemerata,
Virou cidade linda e paladina
De valores e de nobreza grata,

Tão rica no saber que a ilumina,
Atenas, não da Grécia mas da Mata...
Nome que Aquino deu a Leopoldina.

Ou seja, em seu inspirado soneto de 1927 o Bispo Dom Aquino de fato “pareceu batizar” Leopoldina como “Atenas da Mata”. Na verdade, agora sabemos, o panegírico foi apenas endossado por Dom Aquino em seus versos. Ele já circulava na boca dos leopoldinenses naquele ano.

José Ribeiro Leitão, nos versos magistrais de 1950, faz alusão ao “nome que Aquino deu a Leopoldina” em clara alusão ao soneto de 1927. Pesquisas históricas mais recentes esclarecem, no entanto, é que Dom Aquino em seu soneto apenas reproduziu - ou, se quisermos, consagrou - o honroso cognome.

A historiadora leopoldinense, Nilza Cantoni, com quem a gente sempre tem alguma coisa a aprender sobre nossa terra, vem de garimpar nas bibliotecas da vida a preciosidade histórica intitulada, “Minas Gerais e seus Municípios”, de Roberto Capri, editado em 1916, por Pocai Weiss & Cia, São Paulo. Nesta obra, o autor nos dá notícia do seguinte, às fls. 242 (literalmente, e na ortografia da época):

“Leopoldina se pode considerar a Athenas da Zona da Matta. A instrucção publica, principal propulsor da civilisação d`um povo é aqui largamente administrada, como attestam os seus estabelecimentos de ensino e a grande frequencia dos seus alumnos”.

Ora, se em 1916 foi possível a Roberto Capri escrever isto, a conclusão é que, em 1927, Dom Aquino apenas reverberou em soneto um louvor que a cidade já conhecia.

O que temos hoje, portanto, historicamente comprovado, é que desde o ano de 1916, data da publicação da obra de Roberto Capri, o cognome “Atenas da Zona da Mata” já era pronunciado em relação a Leopoldina. Ou Roberto Capri o pronunciou pela primeira vez.

E não sem razão. Impressiona repassar a cronologia da obra educacional que os ilustres leopoldinenses, José Monteiro Ribeiro Junqueira e Custódio Ribeiro Junqueira, no amanhecer do Século XX, em 1906, edificaram em nossa terra: um completíssimo educandário com foros de verdadeira Universidade.

Fundado em 1906, o Gymnásio Leopoldinense teve a abertura das matrículas para o Curso Normal em 01.12.1906; no mês seguinte, 15.01.1907, abertura das matrículas para o Curso Ginasial; em 14.02.1909, abertura das matrículas para os Cursos de Farmácia, Odontologia, Obstetrícia, Agrimensura e Belas Artes; em 27.07.1909, inauguração do Jardim de Infância; em 17.03.1910, primeira diplomação de bacharelandos e normalistas; em 17.01.1912, fundação das Escolas de Farmácia e Odontologia; em 03.06.1914, instalação do Aprendizado Agrícola; em 21.03.1918, equiparação da Escola de Farmácia à Escola Oficial; em 13.05.1918, Construção do primeiro bloco do atual prédio (o lado esquerdo do prédio), projetado pelo Dr. Ormeo Junqueira Botelho; em 1926, construção do segundo bloco, dotando o prédio de seu formato definitivo.

Tudo isto, antes de 1927. Depois viria, em 19.01.1930, a Escola de Comércio Professor Botelho Reis é filiada à Escola Livre de Comércio de Minas Gerais; em 1932, equiparação do Gymnásio aos Colégios Oficiais; em 18.12.1932, início das inscrições para o Curso Comercial; em 1934, criação da “Liga Esportiva do Colégio Leopoldinense”; em 25.03.1942, instalação do Curso de Contador; em 15.03.1943, início dos Cursos Clássico e Científico; em 1946, transferência ao Bispado; e, finalmente, em 14.02.1955, assunção do Colégio pelo Estado de Minas.

E vejam o que diz Capri sobre o nosso Aprendizado Agrícola, no ano de 1916 (literalmente):

O Aprendizado Agrícola do Gymnasio Leopoldinense, fundado e mantido pelo "Gymnasio Leopoldinense, tem por fim formar trabalhadores aptos para os diversos serviços da lavoura, de accordo com as modernas praticas agronómicas. Funcciona sob a forma de internato e nelle estão recolhidos filhos de operários agrícolas e de pequenos lavradores, e de preferencia, os menores desprovidos de assistência natural, que recebem instrucção primaria e ensino primário agrícola, bem como educação physica, moral,cívica e intellectual. O ensino agrícola tem um cunho pratico, completando-se por noções theoricas elementares, ministradas durante os trabalhos a que ellas se referirem, como meio de esclarecer e guiar os alumnos para execução dos differentes serviços. O Aprendizado Agrícola do Gymnasio Leopoldinense é localisado em uma propriedade rural distante 2,5 kilometros da cidade de Leopoldina. A administração geral do Aprendizado pertence á do "Gymnasio Leopoldinense", que mantém á sua frente um profissional competente, auxiliado por professores e mestres de culturas e oficinas. Este curso é grátis, e todas as despezas dos alumnos são custeadas pelo Gymnasio.

E conclui:

O "Gymnasio Leopoldinense" funcciona em prédios próprios, os melhores da cidade de Leopoldina, reunindo todas as condições de hygiene e conforto, sendo servidos por irreprehensivel rede de agua e esgotto e illuminados fartamente, a luz eléctrica. O mobiliário e material escolar são de primeira ordem e de accordo com as exigências da pedagogia moderna. O professorado é de reconhecida competência, com grande tirocínio do magistério, dispondo, para o ensino das sciencias e linguas, de todo o material necessário, como sejam - mappas, quadros, amostras, modelos, gabinete de physica, laboratório de chimica, museu de historia natural, laboratório de pharmacologia. bromatologia, microbiologia, chimica analytica, gabinete odontologico, oficina de prothese, pavilhão de anatomia, toxicologia, etc.
A alimentação é sadia e abundante e tomada conjunctamente com todo o pessoal administrativo.
O Gymnasio mantém um medico para inspecções medicas dos alumnos internos.
O "Gymnasio Leopoldinense: foi equiparado ao Gymnasio Nacional pelo dec. federal n. 7.193, de 29 de novembro de 1900, e ás Escolas Normaes do Estado de Minas Geraes, pelo decreto estadoal 1.9-12, de 6 de setembro de 1906. O Conselho Superior do Ensino concedeu fiscalização á Escola de Pharmacia e Odontologia, fundada em 17 de janeiro de 1912, em sua sessão de 31 de julho de 1916.

Estamos entendidos. Em 1916 Leopoldina já era “Atenas da Zona da Mata”. Não importa quem terá dito isto pela primeira vez. Vamos segurar as pontas para, cem anos depois, não estarmos aqui a desmentir a honrosa alusão.
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(Esta crônica se baseia em dados pesquisados pela historiadora Nilza Cantoni - Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 30 de novembro de 2009)

Dom Francisco de Aquino Corrêa

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Em número recente deste jornal, publicamos soneto do Professor José Ribeiro Leitão, intitulado “Leopoldina”, em cujo verso final é mencionado o cognome da nossa cidade, “Atenas da Mata”, como “Nome que Aquino deu a Leopoldina”.

Neste 27 de abril de 2006, data em que Leopoldina comemora seus 152 anos, nossa homenagem é dirigida àquele grande homem que, um dia de passagem por nossa terra, concedeu-nos o glorioso epíteto. Afinal, além do culto professor e jurista, Dr. José Ribeiro Leitão, que pessoalmente o conheceu em Mariana, no ano de 1942, certamente não são muitas as pessoas, nesta cidade, sabedoras de quem, pela primeira vez, disse que Leopoldina é a “Atenas da Zona da Mata”.

Pois foi Dom Francisco de Aquino Corrêa, Arcebispo de Cuiabá,* homem de notável cultura e que, aos 32 anos, assumiu o governo do Estado do Mato Grosso - então provincia, a qual governou de 1918 a 1922.

Escreveu o soneto “Leopoldina” – segundo o Dr. José Ribeiro Leitão - quando aqui esteve, em 1927, em visita a Dom Aristides de Araújo Porto, então vigário da Paróquia de São Sebastião, depois Bispo de Montes Claros. Naquela mesma oportunidade, conhecendo Piacatuba, dedicou-lhe outro soneto - “A Cruz Queimada”, ambos constantes de seu livro “Poética Nova Et Vetera”.

Dom Aquino foi o único mato-grossense a compor o quadro da Academia Brasileira de Letras, graças aos inúmeros livros que escreveu. Foi também um dos principais incentivadores à fundação da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso. É considerado o maior nome da cultura no Estado, em todos os tempos. Um dos seus poemas, “Canção Matogrossense" foi oficializado através do Decreto n° 208, de 05/09/1983, como o Hino de Mato Grosso.

Dados biográficos da Academia Brasileira de Letras informam ter sido ele o quarto ocupante da Cadeira 34, eleito em 9/12/1926, na sucessão de Lauro Müller e recebido pelo Acadêmico Ataulfo de Paiva, em 30/11/1927. Dom Aquino era sacerdote, prelado, arcebispo de Cuiabá, poeta e orador sacro, nascido em Cuiabá, no dia 2/04/1885, e falecido em São Paulo, em 22/03/1956. Era filho de Antônio Tomás de Aquino e Maria de Aleluia Guadie-Ley Corrêa.

Cedo revelou sua inteligência, amor aos estudos e vocação religiosa. Iniciou estudos no Colégio São Sebastião e fez o curso no Seminário da Conceição.

Depois freqüentou o Liceu Salesiano de São Gonçalo, onde recebeu o grau de bacharel em Humanidades. Em 1902 ingressou no Noviciado dos Padres Salesianos de Dom Bosco, em Cuiabá, ordenando-se sacerdote em 1903 e iniciando curso de Filosofia. Em 1904 seguiu para Roma, onde matriculou-se, simultaneamente, na Universidade Gregoriana e na Academia São Tomás de Aquino, por onde doutorou-se em Teologia, em 1908.

Em 17/01/1909, já tendo recebido todas as Ordens Menores e Maiores, foi ordenado presbítero. De volta ao Brasil, foi nomeado diretor do Liceu Salesiano de Cuiabá, cargo que desempenhou até 1914, quando foi designado, por S. Santidade, Pio X, para titular do Bispado de Prusíade e Auxiliar do Arcebispo da Diocese de Cuiabá, missão em que foi investido em 1/01/1915, aos 29 anos, sendo, então, o mais moço entre todos os bispos do mundo. Em 1919, o papa Bento XV conferiu-lhe os títulos de Assistente do Sólio Pontifício e Conde Palatino. Em 1921, com o falecimento do Arcebispo Dom Carlos Luís de Amour, foi elevado ao Arcebispado de Cuiabá, recebendo o Pálio Arcepiscopal das mãos de Dom Duarte Leopoldo e Silva, arcebispo de São Paulo.

Em 1917, indicado pelo governo de Venceslau Brás como elemento conciliador, foi eleito governador do seu Estado para o período de 1918-1922. Ali se manteve à altura de sua consciência democrática, de sua capacidade construtiva e de seu profundo sentimento patriótico.

Amparou a cultura regional, tomando a iniciativa de fundar a Academia Mato-grossense de Letras onde, depois, como titular, seria aclamado por unanimidade Presidente de Honra. Criou também o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, do qual foi eleito Presidente Perpétuo.

Autor de inúmeras e notáveis Cartas Pastorais, de discursos, trabalhos históricos e poesias, Dom Aquino Corrêa publicou Odes, o seu primeiro livro de versos, em 1917, seguido de Terra Natal, onde reuniu poemas de exaltação a Mato Grosso e ao Brasil, cheios de suave lirismo e fascínio por sua terra.

Mais tarde deu a público alguns trabalhos em prosa. Desfrutava de absoluto domínio da palavra do alto de uma tribuna. Não só como orador sacro era admirado, senão também na tribuna das conferências. Destacam-se a conferência magnífica sobre o “Centenário do Bispado de Cuiabá”, proferida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde foi recebido em 1926; a “Mensagem aos Homens de Letras”, proferida na Academia Brasileira de Letras; “A verdade da Eucaristia”, oração inaugural do V Congresso Eucarístico de Porto Alegre, em 28/10/1948.

Registra o acadêmico Corsíndio Monteiro da Silva que a voz de Dom Aquino reboava por sobre a multidão de gente silenciosa. Em frente à velha Catedral, a histórica Matriz, o mais jovem bispo do mundo, o maior orador sacro do seu tempo e já arcebispo de Cuiabá, sempre levava às lágrimas milhares de pessoas, com o seu comovente e esperado Sermão do Encontro, ouvido com o silêncio respeitoso reservado aos grandes momentos.

Dirigindo-se para o Senhor dos Passos, à sua direita, exclamava como o eco de uma palavra que ficou para sempre na História da Humanidade: "Ecce Homo! Eis aí o Homem! O Filho de Deus, que desceu do céu à terra para redimir os nossos pecados e nos salvar, e só encontrou incompreensões, insultos e sacrifícios! Ecce Homo! Eis aí o Homem! O Cordeiro de Deus, o Mensageiro do Amor entre os homens e que só encontrou entre eles desamor e crueldade, e a maldição de uma cruz, e o ultraje de uma coroa de espinhos! Ecce Homo! Eis aí o Homem!

Monsenhor Pedro Cometti, no seu livro "Dom Aquino Corrêa - Arcebispo de Cuiabá - Vida e Obra" escreveu: "Na segunda, terça e quarta feiras, os homens acorriam à Igreja do Bom Despacho para o tríduo de pregações, invariavelmente a cargo do Arcebispo. Ali, era o pai que falava aos filhos maiores, preparando-os, com palavra e coração de apóstolo, para o grande encontro com o Salvador misericordioso, no sacramento do perdão e com a sua humanidade e divindade na Comunhão Pascal. Pregava Jesus Cristo e Jesus crucificado! E seus sermões eram preparados, meditados, rezados. O grande orador, o poeta inspirado, transformava-se no apóstolo meigo, fervoroso, arauto de Deus que transformava corações".

Ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 30/11/1927, Dom Aquino Corrêa já era reconhecido como o maior tribuno sacro do Brasil, quando disse: Ao entrar para a Academia, senti que, também eu, galgava as alturas de uma acrópole, mas não de uma acrópole em ruínas, mas Acrópole imortal, onde os Propileus não perdem a elegância ática dos seus mármores, e o Partenão cristaliza, para sempre, o sorriso divino da beleza. É a radiosa Acrópole da nossa arte literária, da qual vós, Senhores Acadêmicos, sois as colunas vivas e gloriosas.

E, finalizando: Creio na literatura da razão e da fé, da esperança e do amor, da religião e do patriotismo; creio na literatura, que é uma alavanca de ouro, elevando os corações para o ideal e para a virtude; creio na literatura, que, à semelhança da olímpica Hebe, propina aos espíritos, em vasos de filigrana, os manjares da imortalidade; creio, enfim, na literatura, que à imitação dos cânticos de Moisés no deserto, acompanha, orienta e suaviza as marchas gloriosas da civilização para a Canaã dos seus eternos destinos.

Solenemente empossado na chefia do governo do Mato Grosso, Dom Francisco de Aquino Corrêa iniciou no dia 22/01/1918 a difícil missão de unir as correntes políticas do Estado envolvidas na "Caetanada", crise que teve início em 30/06/1916, quando o presidente Caetano Manoel de Faria e Albuquerque, aborrecido com os acontecimentos, requereu licença de 90 dias ao Legislativo Mato-grossense, mas a oposição, em maioria, pretendeu transformá-la em afastamento definitivo.

O presidente da República, Wenceslau Braz, interveio na questão e, em reunião realizada no Rio de Janeiro, representantes do Partido Republicano Mato-grossense firmaram um acordo para eleição de Dom Francisco de Aquino Corrêa, como candidato de conciliação ao governo estadual, no pleito marcado para 01/11/1917. Dom Aquino recebeu o Estado em difícil situação financeira, mas sob todas as dificuldades conseguiu realizar diversas obras públicas, de Norte a Sul do Estado.

Em 14/08/1918, a sua iniciativa de criar o Brasão de Armas de Mato Grosso foi transformada na Lei N.º 799. Durante seu governo ocorreu o bicentenário de Cuiabá, em 08/04/1919, com inauguração de várias obras: luz elétrica em Cuiabá, Praça Luís de Albuquerque (no Porto), onde foi colocado o obelisco de granito cinza originário de Corumbá, que as autoridades e o povo da "Cidade Branca" ofertaram à Capital mato-grossense pelo seu bicentenário.

Ainda durante as comemorações do bicentenário de Cuiabá, o governo de Dom Aquino Corrêa introduziu o automóvel na Capital do Estado e inaugurou as primeiras linhas de ônibus na cidade. Desenvolveu a cultura regional com a instalação do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e da Academia Mato-grossense de Letras e realizou várias obras de grande importância como a inauguração da nova Igreja Matriz de São Gonçalo e as novas instalações das Oficinas do Observatório Meteorológico Salesiano, além de melhorias na Santa Casa de Misericórdia.

Dentre os trabalhos literários de Dom Aquinho destacam-se, ainda: “A Fronteira de Mato Grosso com Goiás”, “Cartas Pastorais”, “Uma flor do Clero Cuiabano”, “Nova et Vetera”, “Florileguim”.

Dom Aquino é, hoje, nome de um município no Estado do Mato Grosso com população estimada em 8.243 habitantes e área de 2212,73 km2. A prefeitura de Cuiabá confere o título honorífico “Ordem do Mérito Dom Francisco Aquino Corrêa” aos cuiabanos que se destacam em trabalhos em prol do desenvolvimento da Cidade.

Vê-se que o autor do nosso charmoso cognome, “Atenas da Zona da Mata”, não foi um homem qualquer e sabia do que estava falando. É nosso dever honrar e preservar a tradição para honra de sua memória.
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 30 de abril de 2006)
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* Surgiram evidências, apuradas mais recentemente pela historiadora, Nilza Cantoni, de que Leopoldina já era cognominada “Atenas da Zona da Mata” bem antes do soneto de Dom Aquino. A propósito, ler nossa crônica “Leopoldina, Atenas desde quando?”

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Crise em Conta-Gotas

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Agosto, 2005

Vi a entrevista de Lula no programa Roda Viva da TV Cultura. A impressão que fica é que o nosso presidente tornou-se um homem sem a prerrogativa da verdade. Não dá entrevista por isto, porque não pode dizer a verdade. A verdade o constrange tanto quanto os botões arrochados do terno que já lhe magoam o manequim excedente. Chega a ser desagradável vê-lo comprimido pela verdade e pela roupa. Por obra do PT, Lula é hoje um refém da mentira. Está lidando com ela como o malabarista de circo lida com o fogo que finge engolir.

Sobre a cassação de parlamentares que receberam dinheiro de Delúbio, via indireta - isto é, Delúbio mandou que apanhassem a grana com Valério - minha visão é a do direito penal. Toda conduta para ser considerada delituosa há de ser “típica”. Isto quer dizer que ela tem que estar prevista em lei, como crime. E com todas as letras. É o "princípio da reserva legal": não há crime sem lei (anterior) que o defina. Sendo assim, se o sujeito foi buscar dinheiro com o tesoureiro, seja para encaminhá-lo a prefeito do interior seja para o que for, e a ele foi dito que os recursos estavam com terceiro... Qual o crime? Onde está escrito que, na mão de terceiro (Valério) ele não podia pegar dinheiro? Não está escrito em lugar nenhum? Então, absolvido! Entre o próximo.
O Suplicy viveu dois minutos de glória quando o protocolo lhe deu esse tempo para falar ao Bush. Falou de renda mínima. No lugar dele eu talvez fosse menos cordial, dizendo ao homem mais poderoso do mundo o seguinte: "Presidente, sou José Ninguém, coisíssima nenhuma em minha pequena cidade e na vida de um modo geral. Seja bem-vindo a este país e não se preocupe muito com a aparente influência do Chavez por estas bandas. Há entre nós uma única pessoa com saco e sub-cultura para ouvi-lo: o Sr. Lula. Mas não se exulte. A disposição para ouvir V. Exa. é ainda menor!"

Já a Senadora Heloísa Helena tem decepcionado. Teve a infeliz idéia de vestir camiseta com inscrição “Fora Bush”, na oportunidade da visita do presidente americano! Tiro no pé. Condenou-se a impressionar não mais que o segmento eleitoral rasteiro do "bota pra quebrar". Demonstra ser ave de vôo muito curto. Se tivesse a dimensão correta da história brasileira e de sua inserção na geopolítica das Américas e do mundo, talvez não lhe faltasse sensibilidade para o real sentido da presença do presidente estrangeiro em visita ao país.

Encontraram filão do valerioduto numa subsidiária do Banco do Brasil, a Visanet. Do jeito que a gente temia: era dinheiro nosso! Do contribuinte. Agora é só ir encurtando a linha que vem o resto... Todo furto deixa rabo e ladrão é burro por princípio. Se não fosse, não seria ladrão.
Não procede a má-vontade do presidente Lula com os jornalistas. Jornalista ganha pra ser chato; governante ganha pra ser chateado, porque a ele foi confiada a gestão da "coisa pública" de cujo destino o jornalista é informante e fiscal. Ponto final.

Ninguém pensou no que eu, diante das lágrimas e das orações do Mabel, garrei a maginá. E se em vez de troca partidária, o milhão oferecido à deputada goiana lastreou foi uma cinematográfica "proposta indecente" à moça e, esta, por justa e decente reprimenda, resolveu vingá-la no campo do aliciamento político? Um prato feito para Denise Fraga contar mais uma historinha familiar na TV.
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(Publicada no jornal LEOPOLDINENSE de 31.08.2005)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Homenagem ao Dr. Lélio Lara

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Em cerimônia realizada a 22 de dezembro último, no gabinete do então prefeito de Barbacena, Célio Copati Mazoni, foi dada a denominação de “Dr. Lélio Lara” ao posto de Pronto Atendimento Municipal construído no antigo Hospital Colônia daquela cidade.

Em cerimônia a que compareceram autoridades do executivo e do legislativo municipal, além de toda a direção da FHEMIG com seu presidente Dr. Luiz Márcio Araújo Ramos, foi solenemente entregue pelo prefeito Mazoni a cada filho do prestigioso médico leopoldinense, Dr. Lélio Lara, uma réplica do Decreto Municipal nº5369, de 22/12/2004, dando nome ao Pronto Atendimento do novo Hospital Regional de Barbacena.

A transformação daquele centenário Hospital Psiquiátrico (Colônia) em Hospital Regional decorre do pleno sucesso do programa de desospitalização do doente mental levado a cabo em Barbacena pelo psiquiatra Dr. Lênio de Castro Lara, Secretário Municipal de Saúde do Governo Célio Mazoni e filho do homenageado.

As internações psiquiátricas foram reduzidas de 200 a 250 para, apenas, cerca de 15 internações/mês, com desativação de 500 leitos em cujo lugar passaram a atuar as Residências Terapêuticas, os CAPS (Centro de Atenção Psico-Social) – CAPS Municipal, CAPS Álcool e Drogas, CAPS Centro de Convivência.

O programa de desospitalização deu projeção nacional à Prefeitura Célio Mazoni, com reconhecimento das Conferências Estadual e Nacional de Saúde Mental, elevando Barbacena a referencial de tratamento psiquiátrico no país.

O Pronto Atendimento Dr. Lélio Lara servirá a cerca de 50 municípios com população em torno de 750.000 habitantes.

O médico homenageado nasceu em Bonsucesso, oeste de Minas, a 06/09/1908, formou-se pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte em 1935 e exerceu a profissão em Leopoldina entre 1948 e 1969, ficando por 21 anos à frente do nosso Centro de Saúde.

Antes, clinicara nas cidades de Santa Maria do Suassuí, da qual foi Prefeito por 10 anos, e Peçanha onde, no Governo Vargas, foi igualmente nomeado Prefeito por 1 ano.

Rotariano apaixonado e tendo cursado o secundário em tradicional educandário de São João del Rey, seu amplo ciclo de amizades o ligava a várias cidades mineiras.

Em Leopoldina presidiu Rotary por duas vezes, tornando-se ainda um dos fundadores dos clubes rotários de Cataguases, Caratinga e Lavras.

O ex-prefeito de Leopoldina, Dr. Márcio Freire, em seu primeiro governo, também homenageou o médico ilustre atribuindo seu nome a um Posto de Saúde no bairro Três Cruzes.

Dr. Lélio Lara era casado com Da. Laura de Castro Lara. Faleceu em Belo Horizonte, aos 80 anos, em 19 de julho de 1988, deixando nove filhos e doze netos.
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(Publicada na Gazeta de Leopoldina, MG, de dezembro de 2004)

domingo, 23 de maio de 2010

Ethos

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Novembro, 2006

A palavra é grega, e quer dizer costume. Em sentido mais amplo, conjunto de caracteres culturais que distingue um grupo social de outro.

A tal propósito, li há algumas semanas na coluna do Carlos Alberto Teixeira, d’O Globo, notícia de estudo acadêmico intitulado “Exploração sexual e alívio retórico”, feito por um certo Todd Frobish, professor da Universidade Estadual de Fayetteville, Carolina do Norte, USA.

Trata-se de abordagem antropológica, que se pretende séria, sobre a indústria do sexo online. Especula sobre o ethos da “tribo” dos internautas freqüentadores do site da Playboy em seus discursos persuasivos de conquista, como exemplo do contraste entre sexo “projetado” para dar continuidade à espécie, e sexo transformado em símbolo de prazer carnal e... virtual.

Esse contraste, às vezes análogo à chegada do astronauta Armstrong à lua, em 1969, quando na terra continuávamos a ter gente morando em cavernas e emitindo grunhidos, é bem ilustrado pela notícia de um jovem casal de alemães. Eles procuraram a Clínica de Fertilidade da Universidade de Lübeck porque, casados há oito anos, não conseguiam ter filhos.

Feitos todos os testes, nada se apurou de errado com ele, de 36 anos, nem com ela, de 30. Mas a razão da infertilidade ficou logo clara quando o especialista lhes perguntou com que frequência faziam sexo. Responderam juntos: “Was?!” (que traduzido do alemão quer dizer: “O quê?”)

Isto mesmo. Eles nunca tinham praticado sexo e nem sabiam do que se tratava. Não eram deficientes mentais. O estrago era cultural mesmo (ethos)... Num mundo que já vai longe em tecnologia e comunicação, os dois foram criados em ambiente social, familiar e religioso ultra antiquados e repressivos. Simplesmente ignoravam que para ter filhos seria necessário algo mais que apenas casar no civil e no religioso.

Conclusão do Carlos Alberto Teixeira é de que assim é este nosso planetinha. De um lado, trabalhos acadêmicos avançados sobre a vida sexual online até de internautas e, de outro, casais que nunca treparam na árvore do conhecimento, em busca da pitanga madurinha da intimidade conjugal.

Isto existe!
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(Leopoldina, 29.11.2006)

sábado, 22 de maio de 2010

Contrato e Mudança Social

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Introdução

André Franco Montoro (1) em sua cátedra magistral, leciona que:

"Justiça Social é nome novo de uma virtude antiga - justiça geral ou legal - que Aristóteles estudou detidamente e exaltou, nos seguintes termos:

Nem a estrela da manhã, nem a estrela vespertina são tão belas quanto a justiça geral.

Velho de mais de vinte séculos, esse conceito é, entretanto, de vigorosa atualidade. Podemos dizer, quando se aproxima o ano 2000, que praticar essa justiça é despertar em nós o sentido social que um século de individualismo quase destruiu."

É sob essa inspiração que já se erigira no Código de Napoleão (1804) que surge, no Brasil Código Civil de 1916, buscando abarcar, nas palavras de Tepedino (Temas de Direito Civil) "todos os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser titular".

O individualismo a que se refere o professor Montoro remonta, portanto, às primeiras influências hauridas pela legislação ocidental aos princípios liberais, principalmente via Código de Napoleão.

Observe-se que a doutrina liberal se desenvolveu essencialmente no Século XVIII, em oposição ao absolutismo monárquico e ao colonialismo. Observava como pontos principais que o Estado devia obedecer ao princípio da separação dos poderes; que o regime seria representativo e parlamentar; que o Estado se submeteria ao Direito, que garantiria aos indivíduos direitos e liberdades inalienáveis, especialmente o direito de propriedade"

Entretanto, como anota Gustavo Tepedino (2), tal quadro de individualismo oitocentista

"começa a se redefinir, gradativamente na Europa já desde o início do Século XX, e no Brasil depois da década de 30, com a maciça intervenção do Estado na economia e com o processo, daí decorrente de restrição à autonomia privada ao qual se associa o fenômeno conhecido como dirigismo contratual."

É relevante ter em conta que nosso Código Civil de 1916 passou a não satisfazer a demanda legal que a sociedade que se modernizava entrou a exigir, dando-se a proliferação de leis especiais que surgiam para atender insuficiências da lei substantiva civil, como se exemplifica pelo surgimento da Lei do Inquilinato, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei do Divórcio, etc.

Ainda na observação de Gustavo Tepedino (3), "a evolução do cenário econômico e social passou a exigir do legislador uma intervenção que não se limita à tipificação de novas figuras do direito privado (antes consideradas como de direito especial), abrangendo, ao revés, em legislação própria, toda uma vasta gama de relações jurídicas que atingem diversos ramos do direito."

Sob a óptica do emérito Orlando Gomes, o propósito era "dar ao equilíbrio social sentido mais humano e moralizador", o que certamente conduzia a uma política legislativa de "vigorosa limitação da autonomia privada".

Essa mesma evolução econômica e social vai se refletir no Brasil sobre o legislador constituinte de 1988, imbuído da necessidade de conceber e construir um Estado Social moderno.

Sem amparo concreto no âmbito do direito privado, valores essenciais da sociedade foram buscar abrigo em normas constitucionais, num efeito de flagrante publicização do direito civil.

Já procedia, também, de Orlando Gomes (4) o diagnóstico. de uma tendência, nos últimos tempos,

“da emigração desses princípios para o Direito Constitucional. A propriedade, a família, o contrato, ingressaram nas Constituições. É nas Constituições que se encontram hoje definidas as proposições diretoras dos mais importantes institutos do direito privado".

E aqui, quando se defere mais força ao Estado, não é no sentido de que ele volte a oprimir como antes, mas, ao contrário, para que ele exerça sua função reguladora, distribuindo melhor a igualdade e promovendo a fraternidade entre as pessoas, com o fim de assegurar entre elas "um padrão ético de confiança e lealdade".

Desenvolvimento

Tendo este trabalho como intento examinar a incidência dessas mudanças filosóficas sobre o contrato propriamente dito, impende desde logo afirmar que uma importantíssima alteração se verificou no conceito da igualdade formal entre as partes, a partir dessa nova ordem que reclama a consideração de valores eminentemente sociais nas relações de contrato.

Em verdade já vinha de Remi Lacordaire (1802-1861) a constatação de que sempre que o forte contrata com o fraco, "é a liberdade de contratar que escraviza, é o judiciário que liberta".

Com o advento do Estado Social, assinalado entre nós pela Constituição de 88, passa a ser considerado o contrato não uma lei inflexível entre as partes, como era inexorável na aplicação da fórmula pacta sunt servanda, mas uma consertação passível, sempre, de ser afeiçoada à justiça devida ao mais fraco, tão pronto quanto verificado desequilíbrio sensível entre os pactuantes. Vai ocorrer a incidência, em tais casos, da cláusula rebus sic stantibus, como convém ao império da Constituição vigente, preocupada, não com a garantia de liberdades formais, mas com a promoção da justiça social.

Segundo síntese da Professora Fabiana R. Barletta (5) com créditos a Luis Roberto Barroso e a Michele Giorgianni,

"com o Estado intervindo cotidianamente na legislação, cai por terra a summa divisio segundo a qual o Direito Público é aquele emanado pelo Estado, voltado para objetivos de interesse geral, em oposição frontal ao indivíduo. Atualmente, as intervenções estatais visam exatamente proteger o indivíduo em sua dimensão comunitária. Não há mais como sustentar que o Código Civil é o berço do protecionismo à pessoa porque a Constituição da República chama para si matérias que visam defendê-la precipuamente, seja nas relações proprietárias, seja nas relações familiares e também nas relações contratuais interprivadas".

É a transformação da Constituição garantidora das liberdades formais, já agora incorporando a função de promover a justiça social em um novo ambiente econômico¬sociológico, inclusive com intromissão moderadora na ordem econômica, interferindo diretamente nos contratos, que a esta são afetos. Intervenção esta muito menos preocupada com o "negócio jurídico" abstratamente considerado, do que com seu conteúdo material imanente e com a verdadeira vontade subjacente inspiradora do pacto.

De tal modo se impõe esta nova visão dos Contratos, ao ponto de o Professor da UFAL, Paulo Luiz Neto Lobo (6) ver como morto por consumpção ou senectude,

"absolutamente imprestável e inadequado, o modelo liberal de contrato, porque incompatível com uma função que ultrapassa a autonomia e o interesse dos indivíduos contratantes".

Aliás, a inconsistência dos contratos tradicionais não é recente e vinha sendo enfrentada, em pleno regime do Código Civi1 de 1916, por leis extravagantes e pela doutrina, seja com base na "boa-fé", na "lesão ao direito", ou na cláusula rebus sic stantibus e seus consectários da "onerosidade excessiva", no "enriquecimento ilícito", na "teoria da imprevisão", etc.

Chegou-se logo a um grau irretornável de dirigismo contratual com a intervenção do legislador na própria liberdade de contratar, nas hipóteses de impossibilidade de uma parte poder escolher a outra parte com que contrata, como é o caso da concessionárias de serviços públicos; nas hipóteses em que a própria lei estabelece, no todo ou em parte, regras contratuais, como no inquilinato e nos empréstimos bancários; e nas hipóteses em que a lei impõe contratos padronizados.

Por último, desnaturando quase que por completo a teoria tradicional do contrato, surgem as preocupações com os direitos transindividuais - de pessoas alheias à relação contratual - como os direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

Entre nós, hoje, talvez se situe nas relações de consumo a intervenção maior do poder público na prática contratual.

Buscando uma síntese sobre a incapacidade da legislação contratual clássica de lidar, nos dias que correm, com os problemas inerentes à proteção do contratante débil, conclui o Prof. Paulo Luiz Neto Lobo (7), antes citado:

"Em suma o sentido e o alcance do contrato reflete sempre e necessariamente as relações econômicas e sociais praticadas em cada momento histórico. O modelo liberal e tradicional, inclusive sob a forma do negócio jurídico, é inadequado aos atos negociais existentes na atualidade, porque são distintos os fundamentos, constituindo obstáculo às mudanças sociais. O conteúdo conceptual e material e a função do contrato mudaram inclusive para adequá-lo às exigências de realização da justiça social, que não é só dele mas de todo o direito."

Conclusão

O contrato, nos moldes em que o estado liberal o concebia, e que ainda pode ser considerado tradicional, já não mais corresponde aos anseios da sociedade atual, revelando-se anacrônico em sua essência. Apesar da assimilação das mudanças às vezes se mostrarem incipientes, o novo conceito de contrato alicerçado em nosso ordenamento jurídico, principalmente sob inspiração constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, sem qualquer exagero, traduz uma mudança de concepção nos parâmetros de vida do cidadão brasileiro, tanto nas relações privadas, quanto naquelas com o Poder Público.

Sendo certo que, em que cada opinião por nós emitida, em que cada telefonema por nós atendido e em que cada atitude por nós tomada, podemos, ainda que involuntariamente, estar consumando hoje a celebração de um contrato, isto nos dá bem a medida do quanto pode resultar distorcido o requisito da vontade, nos diferentes modelos hodiernos de contratação.

Esta nova realidade social impõe que o contrato se transforme "para se adequar às exigências da nova realidade, passando - no dizer da Professora Cláudia Lima Marques (8) -

de espaço reservado e protegido pelo direito para livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas”..

Compete ao homem adaptar-se à realidade que à sua volta se transforma, preferencialmente lançando à terra, nesse processo de adaptação construtiva, apenas as sementes dos melhores frutos, com a fé inabalável dos que fecundam a boa safra, sob pena da semente ter sido lançada em vão.
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NOTAS:

1MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 25a ed., 2000. p. 212
2 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, Ia ed., 2001. p.3
3 TEPEDINO. Gustavo. Op. ciL, p. 4
4 GOMES, Orlando. Doutrina: A Agonia do Código Civil. P:5, n.o 7, Código e Constituição.
5 BARLETTA Fabialla Rodrigues. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR 2001, p. 285
6 LOBO, Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais: RT-722, dez. 95, p. 42
7 LÔBO. Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais. RT-722, dez. 95, p. 44
8 NOVAES, Aline Arquette Leite. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR 2001, Ob. cit. p. 17/18

BIBLIOGRAFIA

1 - MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 25" ed.
2 - TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro:
RENOVAR, 1ª. ed., 2001.
3 - GOMES, Orlando. Doutrina: A Agonia do Código Civil. P. 5, n. 7, Código e Constituição
4 - BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2001.
5 - LOBO, Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais. R T -722, dez. 95, p. 42
6 - LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em www.com.br/doutrina/texto.asp?id=507 (acesso em 15.05.03)
7 - NOVAES, Aline Arquette Leite. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2001.
8 - MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Biblioteca do Direito do Consumidor, v. 1.3 ef. Ver. Atu. Amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998

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(Este estudo foi realizado para o curso de Pós-Graduação em Direito Civil Constitucional – Faculdade Doctum, ano 2004. Orientadora: Profª Fabiana Rodrigues Barletta)

A Responsabilidade Civil nos Códigos de 1916 e de 2003

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INTRODUÇÃO

A Responsabilidade Civil é instituto integrante do Direito das Obrigações. Tem assumido, através dos tempos, novos contornos jurídicos. Isso pode ser notado claramente quando se traça um paralelo entre os dispositivos do antigo Código Civil (1916) e as novidades incorporadas, ou só agora codificadas, pelo Código Civil de 2002.

Muitas dessas inovações já eram amplamente exercitadas pelos operadores do direito, carreadas ao mundo jurídico pela jurisprudência, por construções doutrinárias, por leis esparsas e, sobretudo, por inserção na vigente Carta Constitucional.

Com efeito, nossa Constituição de 1988, abona com ênfase extraordinária ao dever de solidariedade social, como observa apropriadamente Maria Celina Bodin de Moraes (1):

A esse respeito, é de ser ressaltar a tábua axiológica trazida pelas Constituições de século XX, elaboradas e promulgadas após o término da Segunda Guerra Mundial. Nesse novo cenário, o valor fundamental deixou de ser a vontade individual, suporte fático-jurídico das situações patrimoniais que importava regular, dando lugar à pessoa humana e à dignidade que lhe é intrínseca. No caso brasileiro, essa mudança de perspectiva deu-se por força do art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988 e da nova ordem que ela instaura, calcada na primazia das situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial.

O Novo Código Civil Brasileiro, editado 15 anos depois, submete-se a esses mesmos vetores axiológicos que passaram a nortear todo o nosso sistema jurídico.

Neste estudo, nos propomos assinalar as transformações havidas no âmbito da Responsabilidade Civil, numa justaposição entre a antiga e a nova codificação, sublinhando, nesta última, sua contribuição à maior segurança jurídica dos cidadãos, e proteção em situações que impliquem o dever ou o direito de reparação para restabelecimento do equilíbrio nas relações.

2. DA GÊNESIS DO CÓDIGO CIVIL DE 1916

O Código Civil Brasileiro se inspira no Código Napoleônico. Como a idéia do liberalismo demorou tocar solo brasileiro, devido à lenta propagação dos fatos que aconteciam naquela época, principalmente em termos intercontinentais, observa-se um grande espaço de tempo entre o surgimento do Code e do nosso Diploma Civil de 1916. Todavia, é evidente a influência exercida pelo primeiro sobre o segundo, mercê do inegável influxo cultural e intelectual exercido pela França sobre o Brasil, no começo do século.

Constituiu-se, aliás, a Revolução Francesa, no século XVIII, num divisor de águas na história da humanidade. Os ideais libertários e a efervescência cultural, artística, social, filosófica, política, etc. revisaram consciências inspirando transformações. Passou a prevalecer uma supervalorização do homem (individualismo, liberalismo) e uma, conseqüente, limitação ao poder de interferência estatal. Ou seja, floresceu o Estado de Direito.

A Carta Civil Francesa tem arrimo nesse liberalismo – laissez faire, laissez passaire – que se desdobraria na essência do Código Civil Brasileiro, de 1916.
O Código Napoleônico privilegiava o mercado livre, permitindo que a burguesia da época alçasse seu vôo em busca do lucro, sem qualquer intervenção estatal. Todavia, esse mesmo repositório de leis levaria ao aniquilamento dos miseráveis, não dispondo eles de bens materiais, mas somente de sua força de trabalho. O bem jurídico mais protegido pelo Code era a propriedade, que apesar dos enormes avanços políticos e sociais ocorridos na França nos fins do século XVIII, mantinha-se no proscênio dos ideais franceses da época.

Depois que a Revolução acabou, foi a burguesia quem ficou com o poder político na França. O privilégio de nascimento foi realmente derrubado, mas o privilégio do dinheiro tomou o seu lugar. 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade' foi uma frase popular gritada por todos os revolucionários, mas que coube principalmente à burguesia desfrutar.
O exame do Código Napoleônico deixa isso bem claro. Destinava-se evidentemente a proteger a propriedade - não a feudal, mas a burguesa. O Código tem cerca de 2000 artigos, dos quais apenas 7 tratam do trabalho e cerca de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e as greves são proibidos, mas as associações de empregadores permitidas.
(2)

Este foi o parâmetro de lei civil disponível à inteligência jurídica brasileira, e utilizado pelo Brasil, no início do século XX: um liberalismo que massacrava os oprimidos e fazia do capital e da propriedade os fatores diferenciadores.
Neste tipo de Estado Liberal não se cogita da intervenção do Poder Público nas relações econômicas, norteando-se os negócios jurídicos pelo princípio do pacta sunt servanda.

Outra não seria a doutrina dominante no Código Civil brasileiro de 1916. A situação econômica e social e a condição humana dos contratantes, quando da celebração de um contrato, não eram levadas em consideração, pois a vontade livremente expressa no instante da pactuação seria uma verdade estipulada para valer. Pouco importava que acontecimentos futuros passassem a modificar as condições de adimplemento entre os pactuantes. A estes competia cumprir o que fora acertado, com fidelidade, sob pena de incorrer em infração contratual, ensejadora de multa, juros etc.

Não obstante, legisladores e, mesmo os tribunais franceses, passaram a contribuir para a evolução do direito, no campo da Responsabilidade Civil.

A noção da culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa contratual foram inseridas no Código de Napoleão (...). A responsabilidade civil se funda na culpa – foi a definição que partiu daí para inserir-se na legislação de todo o mundo.(3)

De seu lado, o nosso Código Civil de 1916 dedicava poucos dispositivos ao instituto da Responsabilidade Civil. Mas é claramente perceptível que, como um todo, a responsabilidade acolhida pelo nosso velho digesto foi a subjetiva, a qual, para que ficasse configurada, reclamava a concorrência do elemento "culpa", lato sensu, que abrange o dolo e a culpa stricto sensu, ou aquiliana.

A doutrina da culpa assume todas as veras de uma fundamentação ostensiva e franca com o Código Napoleão.(...) Os autores franceses desenvolveram-na em seus caracteres e construíram por todo o século passado, e ainda neste século, a doutrina subjetiva.
O mesmo aconteceu no direito brasileiro, assentado na disposição do art. 159 do Código Civil de 1916(...)
.(4)

Em qualquer ordenamento jurídico, de qualquer país, ainda que se considere as grandes diferenças culturais entre os povos, percebe-se que, quando o tema é responsabilidade civil, a tendência, ao menos quando da formação das noções preliminares a respeito do tema em questão, é a de que fosse abraçada a teoria da culpa (teoria subjetiva da culpa). Isso porque é humanamente natural atribuir-se ao agente que cometeu o ato, o dever de reparar o dano infligido a outrem. Ou seja, inculpar aquele cometeu o ato imediatamente antecedente ao dano, aplicando-se uma lógica temporal aos fatos que contribuíram para o evento danoso.

Não deixa esta de configurar uma “idéia justa”, que confere a obrigação de reparar àquele que necessariamente agiu com culpa (lato sensu), facultando a que a relação jurídica entre ofensor e ofendido recobre seu equilíbrio inicial, de sorte a ninguém arcar com prejuízo para o qual não concorreu.

Com o passar do tempo, entretanto, foram surgindo relações jurídicas de maior complexidade e os juristas entraram a perceber que, em algumas delas, mesmo que ninguém agisse ou se omitisse com culpa, poderia haver repercussão na esfera civil e que, na ausência de constatação de culpa, o prejudicado acabaria por assumir os danos causados ao seu próprio patrimônio. Foi por esse caminho sutil que as linhas básicas da doutrina da responsabilidade objetiva começaram a progredir.

3. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E OBJETIVA

A responsabilidade é dita subjetiva, segundo a teoria clássica, quando fundamentada na idéia de culpa. Isto é, quando ancorada na teoria subjetiva, segundo a qual só haverá responsabilidade quando houver culpa subjacente.
Em tais casos, a culpa ou o dolo haverão sempre que ser provados, para que se imponha o dever de indenizar.

Inobstantemente, casos existem, como foi dito, quando a lei impõe que mesmo o dano infligido sem culpa deva ser indenizado. São as hipóteses ditas de responsabilidade objetiva, sendo suficiente, para que incida a obrigação de indenizar, a ocorrência do dano e o nexo de causalidade. Segundo a teoria objetiva, também referida como teoria do risco, todo dano é indenizável, e deve ser reparado por quem a ele se liga por um nexo de causalidade, independente de culpa. (5)

Carlos Roberto Gonçalves (6), transcrevendo Miguel Reale, esclarece que a responsabilidade objetiva não substitui a responsabilidade subjetiva no Código de 2002.

Responsabilidade subjetiva, ou responsabilidade objetiva? Não há que fazer esta alternativa. Na realidade, as duas formas de responsabilidade se conjugam e se dinamizam. Deve ser reconhecida, penso eu, a responsabilidade subjetiva como norma, pois o indivíduo deve ser responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou dolosa. Mas isto não exclui que, atendendo à estrutura dos negócios, se leve em conta a responsabilidade objetiva. Este é um ponto fundamental.

Com estas palavras, o professor Miguel Reale, supervisor do Projeto de Lei nº634-B/75, que se transformou no novo Código Civil, não deixa dúvida quanto a concorrência com que as teorias, da “culpa” e do “risco” foram , ambas, recepcionadas no vigente Código Civil Brasileiro.

4. O TRATAMENTO DADO AOS ATOS ILÍCITOS NOS DOIS CÓDIGOS

No código de 1916 os Atos Ilícitos são tratados em dois artigos (159 e 160), na Parte Geral, e a verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade, regulados na Parte Especial pelos artigos 1.518 a 1532, regulada a Liquidação das Obrigações Resultantes de Atos Ilícitos nos artigos 1537 a 1553.
No código de 2002, os Atos Ilícitos ocupam, na Parte Geral, os artigos 186 a 188 e, na Parte Especial, a matéria vem regulada nos Capítulos I e II, do Título IX, (Da Responsabilidade Civil), artigos 927 a 943 e artigos 944 a 954, estes últimos ocupando-se especificamente da Indenização.

Nota-se, desde logo, que na enumeração dos Atos Ilícitos, exclui o novo código, na redação do art. 186, a menção à verificação de culpa, que constava do segundo parágrafo do (correspondente) art. 159 do código de 1916, guardando coerência com a doutrina sublinhadamente perfilhada neste novo digesto, da responsabilidade objetiva.
Inclui também o novo código, no artigo 187, o abuso de direito e o exercício irregular de direito, inspirado nos princípios constitucionais triunfantes da boa-fé e da eqüidade, ao estatuir:

Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Sem dúvida, sob o disfarce de um ato legal ou lícito pode ocultar-se ilicitude que cause lesão a alguém, ensejando dever de indenizar. Isto ocorrerá quando se der atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou por desvio da finalidade sócio econômica prevista para o direito.

Finalmente, no art.188, o novo código repete quase que literalmente o texto do art. 160 do normativo de 1916 enumerando as mesmas exceções à ilicitude dos atos, tais como, legítima defesa, exercício regular de direito, deterioração de coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente. São hipóteses excepcionais que não constituem atos ilícitos, apesar de causarem danos aos direitos de outrem, quando o procedimento lesivo do agente se dá por uma razão legítima prevista em lei. Não incide o dever de indenizar porque a própria norma jurídica lhe subtrai a qualificação de ilícito.

5. RESPONSABILIDADE CIVIL NA PARTE ESPECIAL DO NOVO CÓDIGO.

Assunto de que nos ocupamos neste trabalho, a responsabilidade civil veio disciplinada, no Novo Código, nos arts. 927 e 954. Numa análise perfunctória das regras que norteiam o instituto no Digesto de 2002, observamos logo que o art. 927, em seu parágrafo único, institui a responsabilidade objetiva nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.

Depara-se nesse parágrafo único do art. 927, não sem alguma preocupação, o imenso arbítrio conferido ao juiz no discernir sobre a obrigação de reparar, a partir do nexo de causalidade incidente em cada caso, ao apreciar as mais diferentes atividades humanas. Porque, a rigor, toda e qualquer atividade implica em algum risco para os circundantes...

A despeito disto, a letra do art. 927 abriga um importantíssimo avanço no campo da responsabilidade civil, tendente a ensejar no judiciário uma notável expansão das hipóteses de danos indenizáveis.

O art. 928 estatui que o incapaz responderá pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de o fazer ou não dispuserem de meios suficientes; ressalvado consta que não caberá indenização se esta privar do necessário o incapaz ou as que pessoas que dele dependam. Trata-se de responsabilidade solidária.

Pelo art. 929, o dono da coisa lesada em razão de estado de necessidade, o que não constitui ilícito, poderá, desde que não tenha sido o causador do perigo, reclamar indenização do autor do prejuízo. Só não haverá o dever de ressarcir o dano se o lesado for o próprio ofensor ou o próprio autor do perigo.

No art. 930 se contempla o caso de ação regressiva contra o autor do perigo, quando alguém, em estado de necessidade, lesa a outrem e ressarce o dano.

Pela letra do art. 931, empresários individuais e empresas responderão por danos causados por seus produtos postos em circulação, ressalvados outros casos previstos em lei. São as responsabilidades por vício de produtos: vício de qualidade, de quantidade ou de qualidade por inadequação. Este dispositivo se conjuga com os artigos 12 a 14 do Código de Defesa do Consumidor.

Repete o art. 932 a relação das pessoas objetivamente responsáveis por atos de terceiros que constava do art. 1521 do Código de 1916. A culpa do autor do dano implicará na responsabilidade objetiva da pessoa sob cuja direção se encontrar, pouco importando se infringiu, ou não, o dever de vigilância.

Já o art. 933 apenas sublinha os três caso, do artigo anterior (I a III), em que a responsabilidade do representante legal (pais, tutor ou curador) será objetiva, inexistindo presunção juris tantum de culpa.

Trata o art. 934 do direito regressivo na responsabilidade por fato de terceiro, que o código anterior contemplava no art. 1524, dispositivo que também resguardava o princípio da solidariedade moral e econômica relativa à família.

O princípio da independência da responsabilidade civil relativamente à criminal, inserta no art. 1525 do código revogado, está literalmente repetida no art. 935 do Novo Código. Em nosso ordenamento, a instância criminal julga o fato socialmente considerado, competindo à esfera civil apreciá-lo quanto ao dever de indenizar.

Com redação mais sucinta, o art. 936 do código agora vigente regula a responsabilidade pela guarda de animal, que o velho digesto contemplava no art. 1527.

Igualmente, os art. 937, 938, 939, 940 e 941 nada acrescentam à substância do antes previsto nos arts. 1528 a 1532 do diploma substituído, sobre a responsabilidade do dono de edifício em construção; responsabilidade pelos prejuízos causados por coisas lançadas de prédio (effusis et dejectis); responsabilidade do demandante por dívida não vencida; responsabilidade do demandante por débito já solvido; e sobre a desistência da ação intentada, já que tal atitude subentende o reconhecimento do erro ou arrependimento.

O art. 942 trata da sujeição dos bens do lesante à reparação do dano, aditando a solidariedade entre autor e cúmplices e a solidariedade entre o autor e aqueles que têm a sua guarda (pessoas arroladas no art. 932).
Finalmente, o art. 943 trata da transmissibilidade do dever de indenizar. Em verdade, se o lesado vier a falecer a ação de indenização poderá ser intentada pelos herdeiros sempre que não se tratar de direito personalíssimo. Diz o artigo que “O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança.”

As regras DA INDENIZAÇÃO compõem o Capítulo II, Título IX, do Novo Código, isto é, o capítulo DA RESPONSABILIDADE CIVIL, e vai do art. 944 ao 954. São notáveis as alterações relativamente à LIQUIDAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES RESULTANTES DE ATOS ILÍCITOS, compendiadas, antes, nos arts. 1533 a l553 do código de 1916.

Pelo teor do art. 944 se calibra a indenização e a redução eqüitativa do quantum indenizatório. Verificando-se excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e do dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

A culpa concorrente da vítima está prevista no art. 945. Se ela concorre para o evento danoso, sua indenização será fixada levando-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Ocupa-se o art. 946 das obrigações indeterminadas que exigem prévia liquidação de seu valor. Já o art. 947 cuida da reconstituição natural ao status quo ante (sanção direta) ou, quando impossível, a indenização pecuniária equivalente ao dano. Ou seja, a conversão da prestação numa dívida de valor expressa num quantum em dinheiro, a ser estabelecido por lei, por consenso das partes ou pelo juiz.

O art. 948 regula a indenização por homicídio; o art. 949, especificamente, a indenização por lesão corporal ou por ofensa à saúde; e o art. 950 dedica-se à perda ou diminuição da capacidade laborativa.

Diz o art. 951, em referência aos três artigos anteriores, que a matéria neles reguladas se aplica ao exercício de atividade profissional quando, na ocorrência de culpa (subjetivamente) resultar em morte, agravamento de mal, lesão ou inabilitação para o trabalho. Trata-se, já se vê, da particularização da responsabilidade subjetiva de médico, cirurgião, farmacêutico, parteira e dentista.

É instigante o confronto da responsabilidade subjetiva – “negligência, imprudência ou imperícia” - prevista nesse art. 951, em aparente colisão com a responsabilidade objetiva de que trata o parágrafo único do art.927 deste mesmo código. Parece claro, no entanto, que na assunção de uma obrigação “de resultado”, mesmo aos profissionais acima ressalvados, se aplicaria a responsabilidade objetiva.

Serve o art. 952 a regular a usurpação ou esbulho do alheio e da restituição do equivalente da coisa usurpada ou esbulhada.

Prevê o art. 953 que a indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Não podendo o ofendido provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, conforme as circunstâncias de cada caso.

Por derradeiro, trata o Novo Código, no art. 954, da indenização por ofensa à liberdade pessoal. Ou seja, a reparação pela privação da liberdade pessoal e por atos ofensivos à liberdade pessoal, enumerando o parágrafo único do citado artigo como ofensivos à liberdade pessoal: o cárcere privado; a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé; a prisão ilegal. Da matéria de que cuida este art. 954, se ocupavam os arts. 1547, 1550 e 1551 do Código de 1916.

Altera-se apenas o critério de apuração do dano, que o Código de 2002 submete ao arbítrio do juiz, o qual fixará eqüitativamente o valor da indenização.

6. CONCLUSÃO

Beneficia-nos uma induvidosa evolução do instituto da Responsabilidade Civil sob os princípios doutrinários recepcionados pelo Novo Código - da socialidade, da eticidade, da operabilidade e da concretude.

Os valores fundamentais da liberdade e da individualidade hauridos da Revolução Francesa – e que tiveram sua época – nos dias presentes passaram a corresponder a um Direito hermético e auto-suficiente.

Hodiernamente, ao lado dos interesses públicos e privados avulta o terceiro gênero, dos direitos sociais. A serviço, estes, de uma sociedade mais digna e justa, da valorização da ética, da prevalência da solidariedade sobre o individualismo.

É o Direito que se coloca um pouco mais a serviço da vida.
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NOTAS:

1 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana, Rio/São Paulo, RENOVAR, 2003, p.109.
2 HUBERMAN, Leo. A história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. .
3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. .
4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. .
5 ALVIM, Agostinho, Da Inexecução, cit.,p. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, pag.21.
6 Ob. cit. pag. 24

BIBLIOGRAFIA:

MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. In : Revista de Direito Civil. São Paulo, nº65, jul./set., 1993. HUBERMAN, Leo. A história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução, cit.,p. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
FALCÃO, Amilcar. Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 20.
DIAS, José de Aguiar, Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 4ªed., 1960.
BEVILÁQUA, Clóvis, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Comentado. Editora Rio, Edição Histórica, 1958.

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(Este estudo foi realizado para o curso de Pós-Graduação em Direito Civil Constitucional – Faculdade Doctum, ano 2003. Orientadora: Profª Manoela Carneiro Roland Gava).