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sábado, 26 de março de 2011

Da. Pequetita

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Dezembro, 1965

Foto: Da. Pequetita - 28 de janeiro de 1968.

Nasci à beira de um rio de águas claras e vagarosas, ao qual chamavam Rio Pardo. No pequeno vale contíguo à planície denominada Vargem Linda, no sopé da encosta, meu pai construiu, com suas próprias mãos, sobre esteios de braúnas centenárias, nossa casa, simples, mas tão extraordinariamente bela e agradável que os anos ali vividos nós os guardaríamos na memória como um tempo abençoado pelo azul do céu e por todas as dádivas oferecidas pela terra.

Vargem Linda não chegava a ser grande. Uma pequena chácara de alqueire e meio, como sempre ouvi a ela referirem. Dela, meu pai extraia o sustento da família com pequenas culturas de arroz, feijão e milho.

Tínhamos também uma vaca muito bonita e grande, de pelo queimado, chifres altos cor de grafite, chamada Princesa, que nos brindava todas as manhãs, a meus três irmãos e a mim, com o leite concentrado de sua raça zebuína.

Professora rural do lugar, minha mãe, Da. Pequetita, ensinava às crianças pobres a ler e a escrever. No início da década de 1940 a região da Vargem Linda era muito pobre de recursos e as pessoas também. Todos trabalhavam na lavoura e eram poucos os que sabiam assinar o nome. Nem mesmo os proprietários das terras, em sua maioria, puderam freqüentar escolas primárias. O mundo civilizado ficava distante e quase inatingível para eles.

Minha mãe tornou-se muito estimada de toda a população por ser mestra dedicada, exigente, e notavelmente cuidadosa da saúde de seus pequeninos alunos. Era um tempo em que a simples ideia, elementar, de alfabetizar os filhos tinha poucos adeptos. Os menores eram muito úteis na ajuda aos pais na lavoura.

Importantíssimo, portanto, que as professoras se dirigissem às residências a fim de convencer os adultos da importância da leitura, de dar educação aos filhos. Para os meninos e meninas que não podiam comprar cadernos, minha mãe costumava fazer, com linha de costurar e papel de embrulhar pão, os cadernos com que pudessem anotar as aulas.

E, tal como se descreve no início da criação, Deus há de ter visto que tudo aquilo era muito bom, pois parece ter inundado de bênçãos nossas vidas, por todos os tempos até que os tempos se cumprissem.
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(Dezembro de 1965)

Um Caso de Medo

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Janeiro, 1960

Quem, por acaso, vier a escrever um livro sobre o medo, há de dedicar-me pelo menos um capítulo, sob pena de ver incompleto seu tratado. É pouco provável que outro menino tenha se tornado homem passando pelos medos que passei. Por intoleráveis que sejam as lembranças dos malfados que me infernizaram a adolescência, quero falar do maior deles, o tremendo sufoco que foi a primeira “carona” que ganhei, por volta dos onze anos.

Minhas férias estavam por terminar e Titia, possivelmente já desejando descanso das traquinagens do sobrinho irrequieto, tratou de despachar-me para casa. Meu Tio, por comodidade ou falta de tempo, preferiu não ir ao centro de Muriaé, MG, colocar-me num ônibus, para Leopoldina, onde meus pais moravam. Achou mais fácil conseguir, no Posto de Polícia Rodoviária, vizinho de sua casa, que me colocassem de carona num caminhão com “caminhoneiro de confiança”.

Isto foi feito. Não demorou muito, o guarda me confiava a um motorista muito conhecido na minha Leopoldina da época, o Sr. Vitorino Esteves, que gentilmente me acomodou na cabina empoeirada de seu “International KB-7”, entre ele (o motorista) e seu ajudante (e meu inconsciente algoz), um brutamontes com cara de pouquíssimos amigos. E, pela então difícil estrada de cascalho que ligava Muriaé a Leopoldina, iniciei o que veio a ser a mais torturante viagem da minha vida.

Não falo do medo que, para mim, representava o fato de transitar por aquelas regiões desertas, onde muito raro se via uma casa. Nem vale a pena falar do medo, aliás natural, de viajar num enorme caminhão com altíssima carga, dando a entender que iria virar à menor curva do caminho. Não, nem falemos nisso. Falemos do medo maior que abarcava tudo: medo do brutamontes mal encarado. Imaginem que já entrei no caminhão ouvindo relatos de brigas.

Segundo o que ele dizia de suas proezas, seria um assassino. Sim, brigara com fulano, dera-lhe uma facada assim, assado... Quanto a beltrano, foi uma briga ainda pior, em que fora obrigado a matá-lo também a faca. Seu forte parecia ser facada na barriga.

Relatava suas lutas corporais com exaltações teatrais, que eu, ali no meio, sufocado entre palavrões, ameaças e gestos violentos, comecei a tremer e a ter vontade de chorar. Rezava para que Leopoldina chegasse logo. Mas não chegava.

Para martírio maior, no alto de uma serra de aspecto sinistro, mata dos dois lados da estrada, seu Vitorino, dizendo-se cansado da viagem que vinha empreendendo, parou para dormir. Pior: dormir lá em cima da carga do caminhão, deixando-me só, na cabina, com meu verdugo.

Veio-me um nó na garganta e já me havia decidido deixar de lado a vaidade masculina e cair em pranto, quando Deus, possivelmente decidindo interferir, determinou que a assustadora criatura também sentisse sono e fosse dormir numa esteira, debaixo do caminhão.

Só ao fim do dia chegamos a Leopoldina. Tremia. Minha mãe me trouxe água com açúcar.
- Que bobagem, meu filho! O Sr. Vitorino Esteves é pessoa bonísssima, conhecido do seu pai... Se o ajudante trabalha com ele, também não deve ser má pessoa. Ninguém tem culpa de não ter uma cara bonita e não saber escolher o que falar perto de uma criança.


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Baile de Tolda #

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Março, 1960

Por essa época eu não contava mais que quatorze anos e fora convidado para um “arrasta pé”, na roça. A festa vinha a propósito de um mutirão. Para os que não sabem, explico como é o mutirão nas fazendas. Havendo um trabalho de grande urgência, inadiável, e não tendo o rurícola - patrão ou empregado - meios para realizá-lo sozinho, ou de contratar ajudantes, apela para o mutirão. Este consiste em convidar todos os trabalhadores conhecidos na redondeza a dar um dia de trabalho gratuito ao necessitado.

Em troca dessa cooperação comunitária, um farto almoço é servido e, à noite, um formidável “arrasta-pé” a toque de sanfona. O local do baile pode ser o chão de terra batida do terreiro da sede, não raro coberto por um jirau de bambu e folhas de bananeira. A esta cobertura dão o nome de tolda. Donde o Baile de Tolda.

Durante a festança são servidas batatas-doce, assadas, mandioca, sucos e café, como numa festa de São João. A iluminação, precaríssima, à luz de lamparina de querosene. Saibam que estamos na década de 1950, numa área rural do município mineiro de Leopoldina. Nem pensar em luz elétrica.

Mas eu dizia que fora convidado para esse baile. A música estava a cargo do famoso sanfoneiro Orestes, um tocador de violão e um pandeirista.

Igual a um curral, lembro-me que o “salão” era repartido em dois, com cercados de bambus: uma parte maior onde todos dançavam, e outra menor destinada às moças. Assim, os cavalheiros, para conseguirem uma dama, deviam transpor uma espécie de cancela e tirá-la do cercado...

E tome calango!
O forró já ia lá pelas tantas quando, num canto da coberta, encostado num dos esteios da tolda, um mulato assopra uma das duas lamparinas, deixando a sala na penumbra. Foi aquela confusão.
- Pega, pega...! Sem vergonha...!

Ninguém imaginaria como aquela lamparina apagada pudesse dar início ao enorme quebra-pau que se seguiu. A impressão que se tinha, na escuridão, é a de que todos ali passaram a brigar. Ou, se não o fizeram, não foram muitos os que correram comigo.

Soube, no dia seguinte que, terminada a confusão, não deu para seguirem no baile. Uma faca qualquer rasgara o fole da sanfona.
- O sujeito que apagou a lamparina?
Ora, apanhou muito mas não fez por mal. Deu na telha dele. Talvez quisesse saber se apagar lamparina em baile na roça dava alguma confusão...
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sexta-feira, 25 de março de 2011

Colégio Leopoldinense - Trombones & Trombetas

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Março, 1974

Foto: Prof. Luiz de Melo Sobrinho, Prof. Oíliam José, José do Carmo Rodrigues, Dr. Ronald Alvim Barbosa
(20.10.2010 - Cinquenta anos de Oíliam José na Academia Mineira de Letras)

 Minhas lembranças do Ginásio não são lá muito confiáveis. Passaram-se quarenta anos e as turbulências da vida misturaram-me um pouco o baralho. Sobrou, na varanda da memória, confuso mosaico com um gosto duvidoso das paredes enfeitadas a cacos de azulejo.

Custódio Rodrigues Junqueira, companheiro de turma de 50 a 57, depois, de República e de Restaurante do Calabouço, no Rio, costumava implorar nas manhãs de prova escrita:
-Não esbarrem em mim, decorei tudo arrumadinho na cabeça, se balançar desempilha...
Desempilha mesmo.

(Pano rápido) Prof. Oíliam José chega para a aula de História. Num discreto relance sobre nossas cabeças percebe as ausências e, circunspeto, as registra no livro. A turma aguarda em silêncio. Nem um pio. Todos sabem que as dúvidas serão levantadas ao final da aula. O clima é de expectativa e método. Como num ritual litúrgico, braço esquerdo dobrado às costas, direito à frente, batuta de giz entre o indicador e o médio regendo a cadência das palavras, o mestre anuncia o título da lição:
- Os senhores escrevam no princípio de página seguinte: “Dom Henrique, vírgula, O Navegador, ponto”.

Deliciosas preleções. Oíliam José ensinava História e nos adiantava, no exemplo pessoal, os conceitos mais edificantes do seu “Pensador” (Ed. Itatiaia, B.Hte. 1968).
Membro, ainda hoje, da Academia Mineira de Letras, autor de importantíssimas obras, sobretudo históricas, já então admirávamos nele o grande intelectual cuja fleuma e hábitos aparentemente formais nada subtraíam ao homem cordial, simples e religioso.

Tem mais: quem não leu o “Tiradentes”, do professor Oíliam José (imprensa Oficial, B. Hte. 1974), ainda não conhece a melhor biografia, até hoje, escrita do patrono cívico da nação brasileira.
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Nota a posteriori:
No dia 20 de outubro de 2010 tivemos a honra e o júbilo de participar, na Basílica de Lourdes, em Belo Horizonte, da Celebração Eucarística em Ação de Graças e comemoração pelos cinquenta anos de vida acadêmica do Professor Oíliam José, Secretário Perpétuo da Academia Mineira de Letras.
Patrono da Cadeira nº7 da Academia Leopoldinense de Letras, o Professor Oíliam vem nos distinguindo com seu entusiasmado estímulo, mesmo a distância sempre atento às nossas iniciativas.
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No último REENCONTRO, ao falar do amigo e ex-aluno Ivan Vasconcelos, mencionei parte de sua obra literária, mas, lapso imperdoável, deixei passar in albis (Ivan é, também, um grande advogado no Rio de Janeiro) sua notável faceta de craque no time da liga dos anos 43 a 45.

Nilo Bastos, o lépido ponta-esquerda “Nilo Pau-de-Fósforo”, da liga do meu tempo, escala o timaço em que o Ivan requintou seu futebol de fino trato com a bola:
Ruy da Costa Val; Arides e Reche; Flávio Afonso (Zequinha Martinelli); João Paris e Clóvis Vasconcelos; Quinzinho; Ângelo Barbuto; Kênio; Ivan Vasconcelos e Rocinha.

Não menos fantástica foi a liga do início dos anos 50, da canhota calibrada do Nilo e da cabeça culminante do Raul:
Tote, Zé Antônio (“Biribá”) e Coutinho. Haroldo, Vovô e Tiatini, Renato, Batista, Raul, Aluísio, e Nilo Pau-de-Fósforo.

Em sua fase áurea, o Sport Club Juiz de Fora, com Denoni & companhia, levou 1 a 0 em casa. Semanas antes, no “Arranca Toco”, vi a Liga perder de 4, para eles. Não me lembro se “a zero”.
Nesse jogo, o goleiro Tote, que era baixinho e jogava contra o por do sol, adiantou-se um pouco, para observar o jogo da cabeça da área. Por infelicidade sua, roubaram a bola no meio do campo, deram-lhe um “lençol” pela mancha cega, de tal modo que o Tote só veio a saber do gol através de terceiros...

Prof. Botelho era o técnico. Na época os técnicos costumavam escalar cinco atacantes desobrigados de “voltar pra dar combate”. Iniciado o jogo, a única coisa sensata que lhes restava fazer era sentar no banco e rezar. São Judas! Padre Cícero! Padre Antônio de Urucânia! Senhora do Perpétuo, socorrei a minha zaga!

Gente, e o Black Out? Não me lembra a função dele no time. Teria sido roupeiro, massagista, as duas coisas juntas, ou nenhuma das hipóteses consideradas? Roupeiro ele era, sim. (No nosso tempo não havia essa “mamata” da múltipla escolha, não).

A história das minhas Ligas registra ainda os halfs Bastião Fajardo e Magalhães, os pontas, Barbosinha, César Pelão e Toninho, o elástico/bombástico goleiro Campeão, além dos outros, claro, hibernados no luso-fusco da cinzenta.

Belos anos 50. Gostávamos de garotas e de futebol. Nossa rebeldia se limitava a um tolo fascínio por aquele canivete automático do James Dean, mas os sonhos eram coloridos e mágicos no reino das grandes produções de Hollywood.

Nada obstante, em relação ao que se passava com a juventude musical da época, talvez fôssemos um tanto alienados. O certo é que não apareceu, entre nós, alguém fissurado em Rock, guitarra ou violão. Lá na rua esvaíam-se os anos ro-dourados (lembram-se do lança-perfume Rodouro?) de purpurina, bailes e serestas; no rock`n roll, Elvis Presley abria picada para o carrossel dos Beatles... Enquanto a gente gazeteava aulas de Canto Orfeônico e via Adelaide Chiozo tocar acordeão, pelo método Mascarenhas, nas chanchadas da Atlântida.

Na ZYK-5, não sei se idéia do Vanir Nogueira ou do “locutor que vos fala”, experimentamos um programa para “dar vez” aos seresteiros anônimos da cidade. Tivemos notícia, então, de um artista leopoldinense, tão gigantesco quanto humilde e silencioso! Um homem notável que seus conterrâneos praticamente ignoraram: o Professor Manoel Monteiro, o extraordinário “Manoel Reco-Reco”.

Todo artista pobre desta cidade, que aparecia na Rádio, todo violonista de boteco, todo músico de Banda, todo instrumentista de rua sem saída, enfim, todo jovem que não podia pagar professor de música, estudava de graça (ou quase) com o abnegado Prof. Manoel Monteiro. Ouvi muitos desses ex-alunos, particularmente os mais humildes, falarem dele com profunda emoção nos olhos.

O Prof. Manoel produzia também arranjos para a Leopoldina Orquestra. Não lhe faltavam talento e criatividade, mas, certamente, por imposição da moda, colocava na vitrola discos das grandes orquestras americanas e, no papel, recriava estilos com personalíssima competência: Tommy Dorsey, Henry James, Gleen Miller, Benny Goodman, Xavier Cugat, Lecuona Cuban Boys... Saxofones, pistons, trombones e clarinetas inesquecíveis. Pelas mãos e pela arte de Manoel “Reco-Reco”, de uma certa forma todos tocaram, para nós, em Leopoldina.

Um dia minha terra ainda escuta os sinos que por ele dobram e resgata a memória credora de seu grande artista.
Por enquanto, não falemos de trombones nem falemos de trombetas.
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(Publicada no jornal REENCONTRO de março de 1994)

Joaquim Guedes Machado (Crônica)

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Junho, 1996

Não venho repisar velhas anedotas do nosso querido Prof. Machado, daquelas em que ele aparece sempre, furibundo preceptor, o big bad man da canção antiga, a assustar meninos aflitos. Tudo bem, dava um pouquinho de medo, mas tinha sua graça e havia um humaníssimo Professor Machado atrás daquilo tudo.

Mestre Machado, com sua personalidade ímpar, tornou-se um mito, um ícone desse universo cultural, Colégio Leopoldinense e, como tal, objeto de simplificações do nosso imaginário. Simplificações carinhosas, sim, perpetuadoras todavia de esteriótipos como esse da proverbial iracúndia do mestre... Folclore.

Joaquim Guedes Machado era fina sensibilidade, homem justo, culto. Superdotado da ciência matemática, virtuose da arte de Lagrange, tinha também um coração tão largo e azul como esse mar atlântico que, por uma vida, o separou da pátria portuguesa.

Tinha lá aqueles adjetivos bordões, de acordar dorminhocos. Mas não eram insultos. Teatro, e do bom, deliciosas manifestações do humor guedemachadiano.
- Fala vurdade, se repito én, én, én vezes, até um critino percebe!
Com que graça ele, certo dia, nos falou de sua dificuldade na pronúncia brasileira da letra “n”!

O brocardo latino diz que os exemplos ilustram. São muitas as histórias de terceiros onde prevaleceu o bom coração do Machado, mas é melhor recordá-las na primeira pessoa, para não eriçar suscetibilidades mais circunspetas.

No segundo ginasial precisei de aulas de reforço. Machado abominava aulas particulares. Mais ainda, detestava professores que as ministravam com regularidade suspeitosa.
Naquele ano, porém, aceitou lecionar para 5 ou 6 recalcitrantes. Rompe manhã nublada. Mesmo assim disparo lá da roça atrás de recuperação em matemática. Chego à casa do Machado, na Praça Prof. Ângelo, em estado lastimável - tosse sapatos encharcados, cabelos e roupas escorrendo, e ele:
- Meu Deus, é a pneumonia! Vamos secar esta camisa! Vou buscar-lhe ó vinho!

A boníssima Da. Judith socorreu-me com toalha e uma camisa seca. Machado serviu-me uma taça de vinho delicioso. O queixo telegrafando de frio, eu mal atinava se bebia de um só gole ou, “com educação”, aos pouquinhos...
- Beba depressa, faz bem! Acudi-me ele, com inefável ternura...
Guardaria para sempre, no coração, a suavidade daquele vinho.

Decompondo e diferenciando gratas recordações do Mestre, chego a uma prova, surpreendentemente fácil, ali pela quarta série do ginásio. Como de hábito, os problemas já amanheceram “dispostos à lousa” com a ponta fina do giz, sala-5 na penumbra, janelas cerradas, os curiosos enxotados da varanda fronteiriça.
- Ó Iloy, num deixa ninguém aí! (O Regente Eloy, de Recreio). Na porta, meio mestre de cerimônias meio lanterninha de cinema, Machado ia iluminando com o apagador o lugar de cada um: médias altas, atrás.
Penso baixinho: My God, uma barbada! É o Machado de volta ao Cristianismo! Hosana cá por baixo: vai ser meu primeiro dez em Matemática!

Autorizada a largada, não dei chance ao azar. Capricho, cuidado, zelo, atenção redobrada, minúcia, calma, sobretudo calma... muita calma. O Machado, a passos lentos entre carteiras - o terno cinza limpinho, sem as manchas de giz das aulas turbulentas - administra o silêncio, os gestos, a dança nervosa dos grafites.

Súbito dou fé que ele se detém bem atrás de mim. Mas falta coragem para girar o pescoço e conferir. Parece respirar sobre minha cabeça... Um fio de cabelo despegado do Gumex, me palpita um titilo bem no olho do redemunho... Ih! Se me coço agora vai parecer que o enxoto. Resvalo o lho pelo chão e um bico de sapato preto, a bombordo, me energiza um fluído na espinha. Ele percebe o arrepio. Retoma os passos. Não faz cara feia com o que viu... Batata! É dez! Tô caminhando pro dez!

Aula seguinte, o resultado da prova: tirei SETE.
Numa questão, a resposta era DOIS. Encontrei RAIZ DE QUATRO, sem apurá-la!
Levei uma bronca terrível. Não me lembro do qualificativo critino, mas eu até merecia.

No segundo ano do Colegial cheguei à prova oral de Matemática precisando de NOVE E MEIO para passar. A escrita fora um desastre. Reprovação certa. Machado jamais me daria aquela nota numa prova oral. Arrasado, desmotivado, procurei esquecer o problema nos quatro dias de Carnaval que antecederam a prova. Não estudei.

Veio a prova oral. Das janelas da sala-5, o apoio dos amigos tinha sinal trocado. Era opressão, porque já os sentia “ex-colegas”.
- Machado me oferece a sacolinha de flanela. Tire o ponto. Quanto o senhor precisa?
Nove e meio, Professor.
- O quêêêê!... Não pode! Só acredito vendo! Demonstre aí à lousa.

Demonstrei: 9,5. O Machado acelera dois passos na direção do crucifixo e volta ao rubro:
- Por Deus, o senhor sabe que está reprovado; não estudou, é isto, repete ó ano; Jesus, ali, é testemunha de que eu não posso fazer nada...Vamos lá, ponto número 12.

Olha gente, aquele foi meu dia de sorte. De pé, ao quadro, acertei a primeira e a segunda questão. Afirmo que acertei também a terceira. Só que esta, o Machado recusou-se a conferir. Ao terminá-la vi que ele estava de costas para mim. Suspense na platéia. Ele gritou:
- O senhor terminou?
Terminei, Professor. E ele ainda de costas:
- A resposta está certa? Sim, Professor, está correta.
- Então apague porque eu não quero ver! Apague! Apague! Meio decepcionado (eu queria que ele visse) apaguei tudo.

Rigoroso, ele era também tão bom que, notando o correto desenvolvimento da última questão, temeu que algum cochilo meu, a termo, lhe “anunciasse sentença bruta”. Queria aprovar-me.
Aparelhou-se comigo e, erguendo na palma da mão esquerda o livro de notas à altura do meu nariz, escreveu nele o NOVE VÍRGULA CINCO da minha redenção.
Claro que, no ano seguinte, tirei notas melhores em matemática. A cena foi pedagógica.

Por essas e outras, por tudo que ele representa para nós, certamente que o Professor Machado merece um monumento em Leopoldina. Um monumento tão expressivo quanto o que ele edificou em nossos corações com seus símbolos, suas aulas inesquecíveis, seu trabalho cintilante, sua enorme dignidade.
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(Publicada no jornal Reencontro, de junho de 1996)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Notas Para a Gazeta de Leopoldina II

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Outubro, 1995

Emocionante a linda homenagem a Serginho do Rock, prestada pelo cantor Dahal em seu Show de encerramento da Feira da Paz. Dahal foi todo sentimento dedicando ao inesquecível Serginho a canção “Cantador”, criação dele, Dahal, Jotacê e Luiz Ayrão. Um delicado hino à saudade, num luar de noite muito inspirada.

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E, para quem é do ramo, dias atrás, Ray Charles cantou no Parque das Mangabeiras, em Belo Horizonte. Sucesso absoluto num primor de organização. Verdadeira multidão tomou conta do Parque, mas – incrível! – só pessoas educadas. Nada de gritaria, nem correria ou mesmo vandalismo contra a bela vegetação do lugar. Após o espetáculo noturno de agradável reencontro com os clássicos do cantor, um quilômetro de público na direção do estacionamento. Todos caminhando em ordem, civilizadamente, calmamente, urbanamente. Até na segurança ostensiva, distinta e bem composta, aquele tom de mineiríssima dignidade.
Belo Horizonte é assim. Ninguém precisa dormir 12 horas num Jumbo para estar com gente civilizada!

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Oportuna e muito merecida a homenagem do vereador Nilo Ramos ao estimado músico Tuíu, do naipe de metais da nossa antiga Leopoldina Orquestra. Tuíu passa a ser o mais novo Cidadão Leopoldinense, por justo título que, em setembro último, lhe conferiu o Legislativo Municipal.

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Mestre-fundador da famosa orquestra que se tornou referencial de saudades para várias gerações leopoldinenses, o homenageado, hoje residente em Além Paraíba, aqui esteve com esposa e filhos para solenidade de outorga do título, ocorrida nos salões do Clube Leopoldina.
Rica em significados, servirá essa ótima lembrança de Nilo Ramos também de estímulo a uma Leopoldina onde a música popular quase não sobrevive. Sublinhava, aliás, essa incômoda realidade a ausência de uma única e isolada figura de músico local na populosa mesa condutora de trabalhos. Na platéia, entretanto, discreto entre os amigos, o aplauso pertinente do ex-companheiro de Leopoldina Orquestra, o “Ponté”.

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Na festa do Tuíu falou com elegância e propriedade o deputado e secretário de Governo, Bené Guedes. Nosso líder regional é um orador extremamente bem articulado, um político sem arestas.
Política é carreira aleatória por natureza, mas Bené Guedes logrou somar a pessoa exemplar que sempre foi à respeitável figura de homem público que construiu. O adequado ferramental que o habilita tornar-se um digno sucessor de Carlos Coimbra da Luz como liderança política profícua, genuína e duradoura neste seu (e nosso) pedacinho querido Brasil.

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Na imprensa mundial o julgamento de O. J. Simpson, o “Pelé” milionário do futebol americano. Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman foram assassinados e o único suspeito do crime absolvido por um júri de maioria negra. O episódio revolve perigosamente o lodo do racismo na sociedade americana.
– Culpa de quem? Do competente advogado Johnnie Cochran, também negro, que elegeu a tese do racismo da polícia de Los Angeles para sua defesa? Claro que não. Os compromissos éticos do advogado com a sociedade não chegam a tal ponto.
– Culpa dos jurados, que decidiram emocionalmente? Também não, jurado não é jurista.
Culpa, talvez, do próprio “Instituto do Júri”, anacrônico penduricalho processual que muitos consideram sem qualquer contribuição a dar à justiça ao mundo moderno.

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Na imprensa brasileira, a brincadeira inconseqüente e grosseira com a chamada campanha contra a Aids. A melhor síntese veio pela verve de Paulo Francis: “O comercial sobre o Bráulio não é sequer uma questão de mau gosto, porque essa gente não partilha o mundo civilizado onde prevalecem critérios estéticos. É coisa de burocratas cascudos, interioranos de Brasília”.
Falou e disse. Irresponsável desrespeito e violação danosa à paz e ao direito de terceiros, praticados por meia dúzia de moleques ignorantes, travestidos de publicitários. Os prejudicados devem ir à justiças reivindicar polpudas (e justas) indenizações contra o Ministério da Saúde, claro. Depois, o Ministério que tente ressarcir-se, regressivamente, em desfavor de seus brilhantes contratados.

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Olha, quem vive na cidade grande sente. A degradação urbana pode ter começado com o primeiro Camelô ou com o primeiro flanelinha. Depois deve ter vindo o segundo, o vigésimo... Ninguém sabe o momento em que se passou ao descontrole, nem o multiplicador que estabeleceu o caos. Sabe-se, apenas, que a situação ficou irreversível. O Rio, por exemplo, virou um Paquistão sem passagem de volta. Qualquer tentativa de organização é senha para uma guerra.
Que os prefeitos do nosso (ainda tranqüilo) interior guardem, como legado do falecido Ibraim Sued, o indefectível bordão: -“Olho vivo, porque cavalo não desce escada”.
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(Publicado na Gazeta de Leopoldina de outubro de 1995)

O Faz de Besta #

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Março, 2011

Estamos no ciclo de consumo da Bruna Surfistinha e, sendo este mundinho moderno em que vivemos caudatário da mídia escrita e televisada, oportunidade melhor não surgirá para que eu lhes apresente o cidadão mineiro Tatão Magela, mais conhecido no Arraial da Bica d’Água pelo apelido de “Faz de Besta”.

Arraial da Bica é localidade diminuta e, logo à chegada, a uns cem metros da primeira viela parecida com rua, há uma construção modesta, à margem da estrada de chão batido, com avarandado de amianto à frente, onde logo se identifica uma mesa de bilhar, prateleiras com garrafas, quatro pequenas mesas e cadeiras de assentos trançados em embira. Ao fundo um pequeno balcão atrás do qual milita o dono do singelo comércio, Sr. Sebastião Magela, de apelido “Tatão Magela” para quem a ele se dirige diretamente, ou “Faz de Besta” sempre que referido pelas costas. A maldade do povo é um caso sério!

Como disse Miguel Torga, o escritor português que morou em Minas Gerais e estudou no “Gymnasio Leopoldinense”, da cidade de Leopoldina, entre 1920 e 1925, “nós criamos o mundo à nossa medida. Tem o mundo simples dos simples e o mundo complexo dos complicados”.
Decidam vocês em qual desses dois mundos vive Tatão Magela.

Chegado aos cinquenta anos como carroceiro de pequenos fretes, abandonou a penosa profissão no mesmo dia em que faleceu Alarico, seu burro de tração. Na ocasião achava-se ele um tanto ou quanto amancebado, no “baixo merê” local, com Dilvenira Baianinha, a fenomenal “Didil”, moça vinte e cinco anos mais nova. Empenhado em tirar sua amada daquele lugar, para ele intolerável, Tatão teve a idéia de montar (com ela) um botequim (podem ler birosca suspeita) em sua própria casa, situada na entrada do lugarejo, como dito acima.

Tatão cuidaria do negócio em si, principalmente venda de bebidas, e a faceira moreninha, Didil, responsável pela - digamos – administração dos relacionamentos com o público, recebendo no compartimento dos fundos.

O negócio tinha tudo para dar certo, e deu. Regras do jogo bem pactuadas entre “marido” e “mulher”, os freqüentadores, quase só gente conhecida, apenas procuravam ser discretos, poupando Tatão de constrangimentos diretos. Pedir uma cerveja para tomar lá fora “onde está menos calor”, dar volta pelos fundos e entrar nos aposentos da Didil, era uma das encenações menos gravosas ao anfitrião.

Deu-se, porém, que o “marido” começou a revelar ciúmes sempre que as entrevistas com Didil se alongavam além do previsível. Tais clientes, ao voltar lá de trás, costumavam ouvir desaforos e repreensões sem pé nem cabeça, para o contexto. Foi quando alguém mais afoito, mais impiedoso ou mais bêbado, resolveu atiçar a realidade na cara do acossado:
-Não faz de besta, Tatão! Você aluga a mulher... Pensa que a gente é bobo? Não faz de besta, não!

Virou lenda. Tatão Magela ganhou novo apelido e seu estabelecimento a referência definitiva: “Boteco do Faz de Besta”.
Tá lá. Não tem anúncio na fachada, mas todo mundo sabe onde fica.
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(Publicada em 24.03.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

sábado, 19 de março de 2011

Mulheres Turbinadas

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Março, 2011


Se não me engano Rachel de Queiroz disse, numa de suas crônicas magistrais, que palavras são como peninhas soltas ao vento. Depois que se espalham não temos mais como juntá-las de volta. Por isto, todo o cuidado com o que dizemos é pouco. O estrago de uma palavra mal escolhida pode ir muito além do que pretendeu quem a emitiu. Digo isto a propósito do que escrevi aqui na última quinta-feira, com referência ao carnaval: brinquei com quem, imaginariamente, fosse para a rua azarar “mulher turbinada”... Só depois percebi que ficou grosseiro.
Não escolhi bem a expressão e devo redimir-me, principalmente com leitoras a quem possa ter melindrado. É que o conceito popular de “turbinada” pode incluir, para muitos, toda mulher que se haja submetido a plástica corretiva. Não penso assim. A expressão me ocorreu por obra do que todos nós costumamos ver na passarela do samba: aqueles exageros rotundos de mamas e bumbuns arfantes, em artificialíssimas plenitudes. Para mim, um exagero. Como tudo mais, aliás, que coisifique a mulher ou sirva para desmentir sua distinção, sua natureza delicada e superior.
Recentemente, destacado cirurgião plástico do Rio de Janeiro – por acaso nosso velho conhecido – disse em entrevista a uma revista semanal a frase sumular: – Cirurgia plástica é bom senso.
Claro que é. O que excede ao bom senso, o que busca a extravagância, o mau gosto apelativo, aí sim, mereceria, no meu modo de ver, a adjetivação automobilística de “turbinagem”. Em socorro dessas moças deformadas a silicone só aproveitaria o argumento de que “são peças de um evento característico” ( o Carnaval) com direito a transformar seus corpos em “componentes alegóricos”.
Sendo assim, amigos – e principalmente amigas – quando falei em “mulher turbinada” estive longe de qualquer referência desairosa a senhoras e moças que simplesmente decidem por um repaginamento providencial, aqui ou ali. Isto é “de lei” e até eu que não pertenço ao luminoso sexo, diante das oxidases do tempo (injustas que vocês nem imaginam!) ando medindo o pulo para também providenciar retoques.
Vinícius sentenciou que beleza é fundamental e o poeta romano, Ovídio, 43 anos mais velho que Jesus Cristo, naquele tempo, já dissera que “a beleza é um bem frágil”. Ora, fragilidade exige cuidados, não é mesmo.
Vida feliz e autoestima nas alturas, pois, às mulheres que se cuidam.
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(Publicada em 17.03.2011 em  http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Quem é Você

***

Quem é você pra me deixar triste ou contente
Eu já sou do seu passado,
Depois de amar tanta gente,
Quem é você pra me deixar contrariado.

Pra mim você é indiferente,
Tanto faz passar frio
E nem ter mesmo o que comer,
Pois no meio dessa gente
Deve ter alguém que vai lhe proteger.

E quando você estiver desprezada
E vier me pedir pra lhe socorrer,
Eu vou olhar de cima, vou dar risada
E perguntar quem é você.

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Letra: josé do carmo e roberto
Música (samba): roberto
Performance: roberto

terça-feira, 15 de março de 2011

A Volta

***

Foi tudo um sonho,
Mas que me fez ficar tão contente,
E que me fez ficar tão feliz!
Depois de estar perdido,
Voltar aos braços teus,
Enfim.

A saudade era infinita,
De não suportar
O adeus de quem partiu,
Partiu, pra não voltar...
Ah, mas eu voltei.

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Letra: josé do carmo
Música: alexandre

domingo, 13 de março de 2011

Oração

***

Jesus tocou em mim
O que me fez tão contente,
Com o que me fez tão feliz
Depois de estar sofrendo.
Senti a mão de meu Deus
Em mim.

Minha dor era infinita,
De não suportar
A solidão de quem partiu,
De Ti, Pai, pra não voltar,
Ah, mas eu voltei,

Voltei pra Deus!

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo
Música: alexandre

Tem Qualquer Coisa no Ar

***
Tem qualquer coisa no ar,
Algo de bom se anuncia,
Que a gente sente sem ver;
Algo bom,
Algo bom,
Algo bom!

Coisas que se insinuam,
Códigos, chaves, segredos,
Uns sinais no quadro negro
Que me descrevem você.

Apaguei meus dias de chuva
Com razões de entardecer,
Corri, abri a janela
Pra dias de amanhecer.

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Letra: josé do carmo
Música: pedro paulo
Gravada em LP de 1987 – Lup Son
Performance: dhaal

Pour Elise

***

Eu me perdi dentro de mim
E, pour Elise,
Ninguém mais fala
Quem eu sou.

Me procurei em cada esquina,
Horas sem fim,
Sem descobrir onde estou.

Me desviei em seus cabelos,
Nas canções por onde andei,
Ela se foi e eu fiquei,
Fiquei perdido de mim.

Ah, pour Elise,
O amor é assim,
Estou perdido,
Procurando por mim.

Ah, pour Elise,
De onde vim,
Estou perdido
Quem dá notícia de mim?

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Letra: josé do carmo (10.05. 99)
Música: roberto
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Viva a Alegria

***

Eu não vim pedir
o seu perdão,
em primeiro lugar
você faz o que quer
É a tal !

Eu não vou ficar de Pai João
pois já cansei de relevar.
Sua tirania, covardia,
seu prazer de me humilhar...
Tanto, mas tanto que fiz
que agora é o que der e vier,
para mim, você não é mulher.

-Alforria !
Tenho de novo a vida pra viver.
-Vida, bom-dia !
Vim ver teu sol nascer.
-Viva a alegria !
O que passou não influi nem contribui.
-É novo dia!
Eu volto a ser quem fui.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo e roberto (08.03. 99)
Música: roberto
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Hino à Botina

***

Salve
Minha botina
Botina véia de pisar no chão.

Carcei
Minha botina
De andar na vida pela contramão.

Minha botina vinda do cortume
Pisa de banda, pelos meus costume,
Dá no meu pé porque foi amansada
Só quando eu bebo é que ela dá topada.

Minha botina de chutar latinha,
Chuta também titica de galinha,
O sarto arto cavucando o chão
Com seu solado de pneu balão.

Os calo, eu não amargo,
Quarenta e quatro e de bico largo.
Porque minha botina
Tem banda larga mas é coisa fina.

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Letra: josé do carmo (30.07. 99)
Música: roberto
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Vila Feijão

***
Segura Feijão Cru, Minas Gerais, Brasil
Que é teu este sambinha que compus, assaz sutil,
Ai, ai, ai
E diz pra eles que eu passei
A mil.

Mas, Vila Feijão, se não colar... e aí, meu Deus!
Que Papai do Céu proteja, então, a ti e aos teus,
Ai, ai, ai
Das "Taboquinha" o meu lamento
Aos céus!

Vila do Feijão calou Noel
Pois também tem nome de princesa: ( Leopoldina- á- á- á! )
Tem o seu lado esnobe
Só que tá mais pra pobre

E já não tem farofa,
E já não tem vintém,
Metida a bamba
Pra Vila achar que ela é de samba.

Mas, Vila Feijão, se for assim, vem cá, me acode
Será que este sambinha, meio rastaquera, explode,
Ai, ai, ai
De lá dos "Teba" alguém gritou:
-My God !

Mas, Vila Feijão, se é cada um pra si, sacode,
Um sambinha "light" assim também pode "dá" bode,
Ai, ai, ai
De "Pecatuba" alguém gritou:
- Num pode !

Sei que a gente fala, mas perdoa,
Feijão Cru também tem gente boa
E se a mesmice é dose
Temos um violão,
Samba e papo aberto
Com o Iano e com o Roberto,
Pra elevar a média astral
Da baixaria que é geral.

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Letra: josé do carmo (04.03.99)
Música: alexandre
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Show da Vida

***

Palmas pra vida,
Palmas pro samba,
A vida merece homenagem
E eu vivo para aplaudir...
Que pena que a vida não pode
Dar bis.

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A vida é uma escola de samba
Com carros e alegorias,
As dores ocultas em mil fantasias.

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Mas sempre haverá quarta-feira,
Euforia deixando a cidade
E a gente caindo na realidade.

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Ou será que a vida é um samba
Que a gente quer sempre cantar?...
Mas show tem horário pra terminar.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪

Depois que essa vida passar
E eu for só lembrança e alguns ais,
Vou ser alegria deixada pra trás.

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Letra: josé do carmo, dhaal, iano, roberto (jan. 99)
Música: idem
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Apenas José (música)

***

Sou apenas José
Cumpre aqui nem citar
Passagens de João
Tão formal quanto eu.

Essa explicitação
Assaz indispensável
Eis que o meu violão
Tem acordes a opor
Dissonâncias com dor
Curtidas em dó maior,
Engulhos, trastes vocais
Deste versejador.

Quanta insensatez
Quanta alucinação
De um maneiro José
Nas cordas do que ouviu João.

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Letra: josé do carmo (abril 2000)
Música: alexandre
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto

Sucumbir

***

Devo sucumbir aos seus caprichos de mulher
E a tudo que você tem feito contra mim.
Além de roubar toda a minha alegria,
Em mim não deixou nada mais que ilusão.
E sempre vem você com esse tom de ironia,
Me atazanando a vida
Manipulando atração.


Devo sucumbir, mas nunca hás de ouvir
Que é inteiramente seu meu coração.
Posso perdoar, se minha mágoa lhe faz bem,
Só não vale sorrir, pois o troco inda virá,
Nem será de mim, talvez
O certo é que virá...
É sua consciência que um dia vai cobrar.

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Letra: josé do carmo (dez.99)
Música: alexandre
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: alexandre


Sambista Desorientado

***

De fazer samba eu tô de saco cheio,
Eu tô com um samba que não sai do meio,
Que já começa na segunda parte
Desafiando o meu engenho e arte.

Mas logo, à noite eu vou passar um e-mail
Ver se o Roberto bola um desbloqueio
No violão, o impulso é mais barato
E o samba então pode arredondar no ato.

Se não der certo... "Luta que exauriu !"
Eu vou pôr letra em canto de tisiu
Ou assumir que sempre fui cafona
Mandando ver um tango pra Madona:

"No lhores por mi Argentina
Yo no soy nada, no soy mundana...."

O mais provável é que nem isto eu faça,
Muita bobagem pra pouca desgraça
Vocês vão ver o que é bom pra tosse
Se eu embarcar em Ri-ginaldo Rossi:

"Garçon, desce aquela cachaça
Mamãe quer mais uma dóssi..."

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Letra: josé do carmo (out. 99)
Música: alexandre
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: alexandre


Melhor não Lembrar

***

Melhor não lembrar
A razão do meu mal,
Mas, como posso esquecer
Se Deus não fez outra igual.

Ela foi a ilusão,
A melhor que vivi,
Mas aos poucos mudou
E eu mal percebi.

Mas agora eu voltei a cantar,
Eu preciso me reabilitar
De um amor que passou.

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Letra: josé do carmo (jan. 2000)
Música: roberito
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto

Rita Maura

***
Já falei pra Rita num azarar
Minha beleza,
Pra bola
Da gente, no Caçapa
Não baixar.
E se a coisa espalhar?

Rita Maura se apegou ao meu sapato
(Êssa Rita... É um barato!)
Mas pode me indispor com o Genival,
-E onde fica a moral?

Outro dia, fui sozinho ao futebol
(Era um Vasco e Flamengo)
Nesse dia no Maraca é carnaval...
Ói nós dois na geral!

E deu "finado", eu tive que ir ao cemitério
(Olha só caso sério)
Rita me surge de biquini em campo santo,
Imagina o meu espanto!

Sentei num ônibus que nem passa em Madureira
(Era Castelo/Ribeira)
Cai no meu colo uma destaque do Salgueiro
-Quem fala o nome primeiro?

Eu, pecador da Conde Laje
E a Rita de sabotagem
Com o pobre do Genival?!...

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo (07.04.2000)
Música: alexandre
Gravada
no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto


Samba Indevido

***

Renega quem pede um samba
Marcando o prazo de entrega,
O samba só nasce a esmo,
Quem marca o prazo é ele mesmo.

Um samba nunca é devido,
O parto dum samba é doído.
Ao sambista não se cobra
Pois samba não é dinheiro
Nem metro quadrado em obra.
Faz samba quem viu primeiro...

Ninguém hipoteca um samba
Não oferece em penhora,
Nem passa como muamba
Da Zona Franca ou de fora.

O cérebro é um ovo com prega
Na gema onde o samba manobra,
Mas o samba bom e que pega
É o que nasce na dobra.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo (out/99)
Música: alexandre e roberito
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: alexandre

Cavaquinho Moralista

***

Meu cavaquim moral se mancou,
Era muito estranho mas logo entendeu,
Sentiu que o samba ali bandou... Ai!
Pro clima da vacilação.

Quem veio com a gente então nem pagou
Pra ver. Quem era mais safo e dos bão,
Deu aquela de Mané, sartou
De banda pra pegar o boné.

Num dá mais pra entender,
Coisa do passado,
Defumar cavaco,
Num tem condição.

Fora com esse papo,
Fora com a ilusão,
Torrar cavaquinho...
Tá bão!

Vê aí quem quer,
Meu caso é mulher,
Hoje eu não armei,
Dancei.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo (set/99)
Música: alexandre e roberito
Gravada no CD “Bar Paraíso”
Performance: roberto

Cantador

***

Quem canta povo e lugar
Tem algo familiar,
Estou em casa no Brasil
Meu canto é amigo de infância
De quem nunca me ouviu.

A platéia é companheira,
Gente boa, gente amiga
Farinha do mesmo saco,
Nossa amizade é antiga.

Platéia e cantor
Amor à primeira vista,
Não há diferença alguma
Entre o povo e o artista.

O dedo na mesma corda
O mesmo chão nos recorda,
Somos povo de se dar
Somos passado e presente,
Somos gente do lugar.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo e luiz airão
Música: dhaal
Gravada em LP de 1987 – Lup Som
Performance: dhaal




                

Amor por Inteiro

***

Se um dia você perguntar
O que eu penso da vida,
O que eu busco pra mim,
O que eu quero de ti
E o que desejo pra nós.

Se te tocar a lembrança,
O desejo de ouvir minha voz,
Se te faltar um carinho
Ou qualquer coisa assim.

Saiba que eu te pertenço
Muito mais do que a mim,
Muito além da razão,
Além da emoção,
Nosso amor não tem fim.

Ah, eu sou só coração
Não, não é simples paixão,
Paixão é fogo passageiro,
Eu te quero é por inteiro.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo
Música: dhaal
Gravada em LP de dezembro/1990 – Paralelo
Performance: dhaal


Gaivota

***

Voa gaivota branca
Pra lá de mim, prisioneiro
Desta vida, dos costumes,
Da rotina e do dinheiro.

Me leva pra ir contigo
Por teus caminhos de vento
E passar a encruzilhada
Onde eu errei minha estrada.

Leva este artista, menina
Companheira e bailarina,
Atrás da segunda chance
Tão fora do meu alcance.

Portadora das canções
E das notas sobre a pauta,
Contorna com tuas asas
A liberdade que me falta.

₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
Letra: josé do carmo
Música: dhaal e palavrinha
Gravada em LP de dezembro/1990 – Paralelo
Performance: dhaal

quinta-feira, 10 de março de 2011

Marcha da Quarta-Feira

***
Março, 2011

Quarta-feira de cinzas de 2011. Ontem, dia 8, cliquei no You Tube a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, de Vinicius de Moraes e Carlinhos Lyra. Hoje pela manhã, acometido de lembranças, voltei a ouvir.  Eu que nem sou tão dado a Carnaval, passei  a explorar todas as interpretações disponíveis, da linda Marcha.

Repetecos inclusos, não fiquei menos de hora e meia ouvindo a deliciosa lamúria do Vininha. Bendita seja toda inspiração que Vinícius bebeu em nosso nome!

A conclusão a que chego é que não é preciso gostar de Carnaval, nem é preciso participar de Carnaval, para que o espírito da Quarta-Feira de Cinzas baixe em cima (e, principalmente, por dentro) da gente. Os semblantes nas ruas não negam. Na cabeça das pessoas, todo céu de quarta-feira de cinzas é nublado, londrino. Razão assiste ao poeta quando observa que “saudades e cinzas” foram feitas para “restar nos corações” quando “ninguém mais passa cantando feliz”.

Até meia noite será quarta e ainda dá pra curtir a preguiça. Mas amanhã será quinta, quando todo sentimento de trégua e repouso assumirá conotação de malandragem. Será o calendário exigindo da gente um ânimo que o menor quociente de álcool no sangue – por insignificante que seja – oporá obstáculo no argumento pesado da lombeira.

Você não brincou o carnaval, não é mesmo, não foi pra rua bater pernas debaixo de chuva, não foi empurrado, pisado, xingado, cuspido, nem bateu caixa a noite toda, certo? Preferiu um passeio com a família, ao sítio, à piscina, um rachinha de futebol society, peteca, uisquinho, batidinha de limão ou caju... outro uisquinho, torresmo... mais um uisquinho, linguiça frita... outra dose do importado de lei; picles, camarão pingando aquela gordurinha de porco deliciosa, hem!...

Reforça a dose aqui, amigão! Um joelho de porco na brasa, hem, hem, hem, um aipimzinho crocante... Cadê a batida, gente boa?

Maravilha! Nós aqui e os palhações lá na chuva azarando mulher turbinada e pondo em risco a saúde. Tem gente que não pensa no dia de amanhã!

É claro que um pouco de exagero nas frituras e no sal das azeitonas deixa também o estômago da gente meio revirado ao fim de quatro dias. Pra falar a verdade, não sei por que não decretam que as quintas e as sextas, depois do carnaval, sejam igualmente “de cinzas”. Não custava nada. Estômagos e fígados agradeceriam. Falta de graça ter que trabalhar no efeito dessa gastura digestiva, dessa sensação de corpo moído que a ingestão de tira-gosto industrializado provoca no organismo!

Sei que muita gente toma isto como piada, mas tanta porcaria que se ingere para acompanhar scotch e caipirinha é uma temeridade. O que tem ali de química conservante, aromatizante e colorante não é brincadeira. Sacumé que é! E nós, aqui, mal conseguindo ficar de pé...

Tudo culpa do governo que nem tá aí pra essas paradas. Sacou? Desses órgãos fiscalizadores dos alimentos que deviam fiscalizar, mas não fiscalizam coisa nenhuma. Tendeu? Vai ver, numa hora dessas, eles também tão chapados, em paranoia etílica, falando abobrinha por aí... Hic!

Esse país só entra nos eixos, ó meu, quando pessoas conscientes de seus direitos, no uso da sobriedade que só nós sabemos preservar em momentos assim, mandarem logo uma ação de perdas e danos em cima dessa tal de “AVISA”... Ou seria... hic, hic...

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(Publicada em 03.03.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

terça-feira, 8 de março de 2011

Colégio Leopoldinense, III-Encontro de ex-Alunos

***
Junho, 1987

Para mim ele será sempre “Colégio Leopoldinense”. Qual tatuagem indelével em meu córtex cerebral, dentre minha recordações mais gratas, um certo dia de fevereiro de 1950, quando pela primeira vez enverguei aquela camiseta branca com a divisa “Colégio Leopoldinense” bordada em curva azul sobre o peito.

Dia da estréia, também da minha primeira calça comprida. O brim caqui engomadinho! Como eu me orgulhava daquele uniforme!

Meu primeiro dia de aula, onze anos incompletos, uma talvez segunda-feira estratificada na memória! Nós morávamos na roça. Levantei-me muito cedo, preparei meu cavalinho castanho, vesti-me, passei um inútil “gumex” no cabelo espetado e galopei sete quilômetros em direção à “aula das seis e cinquenta”.

Nem de longe supunha que o estrépito das ferraduras no cascalho da estrada Rio/Bahia me anunciava a chegada dos grandes amigos da minha vida: mestres e colegas do Colégio Leopoldinense. Deus lhe pague, cavalinho “Guarany”.

A primeira lição foi de português, na sala 3, com nossa querida Dona Judith. Professora exemplar, toda dedicação. Carinho e bondade até quando se impunha a bronca.
Pena que meus adjetivos de consistência módica não se compadeçam com a justiça devida a mestres como Da. Judith, Da. Belinha, Da. Olimpinha, Joaquim Guedes Machado (a um tempo rigor e ternura), Padre José Ribeiro Leitão (Jurista e filósofo, meu enorme apreço), João Batista Alvim, Professor Moura (Poeta contaminador de sonhos, bom gosto e ritmo), Pedro da Cruz Pereira, Padre José, Geraldo Bertochi, Oíliam José, Átila e Geraldo de Vasconcelos Barcellos (influência estética para a qual nos faltou engenho e arte).

Sim, esse III Encontro foi mais um ato de reconciliação com os bons tempos. Somos todos gratos aos organizadores. Foram eles que tornaram possível gesto lindo, como o que presenciei, dos ex-alunos da turma de 1946: reuniram-se, na Cotegipe, após o almoço do dia 8 e foram levar um abraço ao mestre Barcellos, em sua residência na Cotegipe. Eram os meninos, Wander José Neder – da Assessoria Jurídica do Banco do Brasil, advogado e historiador, Kênio Souza – dentista, Lídio Bandeira de Mello – artista plástico de projeção internacional e Raul Soares de Souza Lima – médico em Belo Horizonte.
O poeta merece. Todos os nossos mestres merecem. Eles foram, eles são o Ginásio, de ontem e de sempre.
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(Publicada no Jornal Reencontro, de junho de 1987)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Cantor do Povo

***

Me lembro eu era menino,
Num dia de inspiração
Peguei da minha viola
E fiz a primeira canção

Juntei palavras bonitas,
Tirei do pinho um som novo,
Foi quando meu pai me disse:
-Meu filho, canta pro povo.

Daí eu ganhei a estrada
Buscando o povo que foge,
Não deu pra agradar meu pai
Mas estou tentando até hoje.

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(josé do carmo & dhaal)
Performance: Dhaal)
Ouvir Aqui


quinta-feira, 3 de março de 2011

O Desafio do Piracajó #

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Março, 2011

Neste verão de temporais e alagamentos por toda parte, alguns até com vítimas, ocorre-me contar a história de uma tremenda tempestade mineira, que me permito classificar como muito engraçada porque, apesar dos estragos, não deixou vítimas.

Minas, como sabemos, é Estado pródigo em trombas d’água. Principalmente, na região da Mantiqueira e Zona da Mata Mineira, espaço fronteiriço aos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, indo do vale do Rio Paraibuna – que corta Juiz de Fora – até o Rio Doce, ao norte. Com intensidade menor, chove bastante também no sul e no centro do Estado.

O toró de que vou falar aconteceu há alguns anos no Oeste de Minas, numa cidade antiga, de médio porte, chamada Bom Sucesso (Assim mesmo, separado, diferente do bairro de “Bonsucesso”, no Rio de Janeiro). Bom Sucesso fica a cerca de 200km de Belo Horizonte, descendo pela Rodovia Fernão Dias, em direção ao sul. É terra de muitas famílias tradicionais de Minas, grandes fazendeiros, industriais e banqueiros importantes do passado recente.

A cidade se estende pelo topo de uma colina, com clima e visual maravilhosos, mas lutou muito em seu passado com um problema que parecia insolúvel. É que a via de acesso ao perímetro urbano, bem ao pé do monte, passava obrigatoriamente por um riacho de margens alagadiças, o Rio Pirapetinga, onde não havia ponte que parasse de pé. Era construir uma nova ponte (sempre de madeira, como da praxe de então), para vir uma enchente de fim de ano e levá-la rio abaixo, isolando mais uma vez a cidade. Um estorvo histórico.

Eis, contudo, que certo prefeito mais afoito vai ao governador e volta de Belo Horizonte com o deferimento da verba necessária para edificar a ponte que convinha ao local, de cimento armado, pilotis bem estaqueados até as profundas do charco, projeto portentoso de engenheiro do ramo. Uma obra – anunciava o Alcaide a seus munícipes - “que virá valorizar a cidade, resolver nosso antigo problema e levantar a auto-estima do nosso povo bom e trabalhador”...

Claro que no dia da inauguração da nova ponte foi feriado municipal. Carros de som percorreram as ruas desde cedo conclamando a população a comparecer ao corte da fita inaugural, banda de música, Hino Nacional, colégios em uniforme de gala, professoras descendo o vale na direção da nova ponte do Rio Pirapetinga com suas classes em forma, a digníssima esposa de Sua Excelência num vestido bem cortado, mandado confeccionar em Beagá, correligionários em trajes de missa, populares de olhos esticados sobre as muitas cabeças coroadas... O palanque, como não poderia deixar de ser, armado em cima da própria ponte.

-Povo da minha terra! Autoridades civis, militares e eclesiásticas que nos engalanam esta festa da municipalidade com a conspícua honra de vossas augustas presenças! Neste dia dois, dia ímpar nas tradições desta terra, nesta efeméride em que inscrevemos hoje - queira Deus para sempre! – nos gloriosos anais da história local, a ventura de uma realização que vem a lume exatamente pelas mãos do mais humilde dos filhos deste chão - o emocionado servidor que vos fala! – eu tenho a honra e o privilégio de entregar ao meu povo esta portentosa “Obra de Arte” que tantos benefícios trará à população local, quiçá de Minas, quiçá do Brasil!

É, pois, com o orgulho e o patriotismo dos impávidos que declaro neste momento aos homens e mulheres da minha terra:
-Nós vencemos o desafio do Pirapetinga!...

Introdução aplaudidíssima para um discurso que, pelo andar da carruagem, prometia ir longe! Só que Nereidas e Tágides camonianas, as ninfas do Rio Pirapetinga, não deviam estar gostando daquilo. Sim, porque mal ressoavam essas empoladas frases do palavroso tribuno, volumosas gotas d’água começaram a despencar de um céu surpreendentemente roxo, baixo e ameaçador. Pingos enormes estalavam no concreto da ponte, uma ventania surpreendente passou a desgrenhar árvores e a enlouquecer porteiras, gente se espalhando por todos os lados, um Deus nos acuda!

O gerente de Banco, Renato Esteves Alves, que me contou esta história, pegou sua filhinha de dez anos, colocou-a nos ombros enganchada ao pescoço e disse:
-Segura firme, filhinha, que papai também vai correr!

Choveu a cântaros calculados por todo o resto da tarde e pela noite. Um dilúvio!
Na manhã seguinte, desolada, a cidade constatava que, da ponte, sobraram apenas ferragem retorcida e guimbas inclinadas dos quatro pilotis.

O desafio do Pirapetinga continuaria por mais alguns tempos.
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(Publicada em 03.03.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)