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sexta-feira, 25 de março de 2011

Joaquim Guedes Machado (Crônica)

***
Junho, 1996

Não venho repisar velhas anedotas do nosso querido Prof. Machado, daquelas em que ele aparece sempre, furibundo preceptor, o big bad man da canção antiga, a assustar meninos aflitos. Tudo bem, dava um pouquinho de medo, mas tinha sua graça e havia um humaníssimo Professor Machado atrás daquilo tudo.

Mestre Machado, com sua personalidade ímpar, tornou-se um mito, um ícone desse universo cultural, Colégio Leopoldinense e, como tal, objeto de simplificações do nosso imaginário. Simplificações carinhosas, sim, perpetuadoras todavia de esteriótipos como esse da proverbial iracúndia do mestre... Folclore.

Joaquim Guedes Machado era fina sensibilidade, homem justo, culto. Superdotado da ciência matemática, virtuose da arte de Lagrange, tinha também um coração tão largo e azul como esse mar atlântico que, por uma vida, o separou da pátria portuguesa.

Tinha lá aqueles adjetivos bordões, de acordar dorminhocos. Mas não eram insultos. Teatro, e do bom, deliciosas manifestações do humor guedemachadiano.
- Fala vurdade, se repito én, én, én vezes, até um critino percebe!
Com que graça ele, certo dia, nos falou de sua dificuldade na pronúncia brasileira da letra “n”!

O brocardo latino diz que os exemplos ilustram. São muitas as histórias de terceiros onde prevaleceu o bom coração do Machado, mas é melhor recordá-las na primeira pessoa, para não eriçar suscetibilidades mais circunspetas.

No segundo ginasial precisei de aulas de reforço. Machado abominava aulas particulares. Mais ainda, detestava professores que as ministravam com regularidade suspeitosa.
Naquele ano, porém, aceitou lecionar para 5 ou 6 recalcitrantes. Rompe manhã nublada. Mesmo assim disparo lá da roça atrás de recuperação em matemática. Chego à casa do Machado, na Praça Prof. Ângelo, em estado lastimável - tosse sapatos encharcados, cabelos e roupas escorrendo, e ele:
- Meu Deus, é a pneumonia! Vamos secar esta camisa! Vou buscar-lhe ó vinho!

A boníssima Da. Judith socorreu-me com toalha e uma camisa seca. Machado serviu-me uma taça de vinho delicioso. O queixo telegrafando de frio, eu mal atinava se bebia de um só gole ou, “com educação”, aos pouquinhos...
- Beba depressa, faz bem! Acudi-me ele, com inefável ternura...
Guardaria para sempre, no coração, a suavidade daquele vinho.

Decompondo e diferenciando gratas recordações do Mestre, chego a uma prova, surpreendentemente fácil, ali pela quarta série do ginásio. Como de hábito, os problemas já amanheceram “dispostos à lousa” com a ponta fina do giz, sala-5 na penumbra, janelas cerradas, os curiosos enxotados da varanda fronteiriça.
- Ó Iloy, num deixa ninguém aí! (O Regente Eloy, de Recreio). Na porta, meio mestre de cerimônias meio lanterninha de cinema, Machado ia iluminando com o apagador o lugar de cada um: médias altas, atrás.
Penso baixinho: My God, uma barbada! É o Machado de volta ao Cristianismo! Hosana cá por baixo: vai ser meu primeiro dez em Matemática!

Autorizada a largada, não dei chance ao azar. Capricho, cuidado, zelo, atenção redobrada, minúcia, calma, sobretudo calma... muita calma. O Machado, a passos lentos entre carteiras - o terno cinza limpinho, sem as manchas de giz das aulas turbulentas - administra o silêncio, os gestos, a dança nervosa dos grafites.

Súbito dou fé que ele se detém bem atrás de mim. Mas falta coragem para girar o pescoço e conferir. Parece respirar sobre minha cabeça... Um fio de cabelo despegado do Gumex, me palpita um titilo bem no olho do redemunho... Ih! Se me coço agora vai parecer que o enxoto. Resvalo o lho pelo chão e um bico de sapato preto, a bombordo, me energiza um fluído na espinha. Ele percebe o arrepio. Retoma os passos. Não faz cara feia com o que viu... Batata! É dez! Tô caminhando pro dez!

Aula seguinte, o resultado da prova: tirei SETE.
Numa questão, a resposta era DOIS. Encontrei RAIZ DE QUATRO, sem apurá-la!
Levei uma bronca terrível. Não me lembro do qualificativo critino, mas eu até merecia.

No segundo ano do Colegial cheguei à prova oral de Matemática precisando de NOVE E MEIO para passar. A escrita fora um desastre. Reprovação certa. Machado jamais me daria aquela nota numa prova oral. Arrasado, desmotivado, procurei esquecer o problema nos quatro dias de Carnaval que antecederam a prova. Não estudei.

Veio a prova oral. Das janelas da sala-5, o apoio dos amigos tinha sinal trocado. Era opressão, porque já os sentia “ex-colegas”.
- Machado me oferece a sacolinha de flanela. Tire o ponto. Quanto o senhor precisa?
Nove e meio, Professor.
- O quêêêê!... Não pode! Só acredito vendo! Demonstre aí à lousa.

Demonstrei: 9,5. O Machado acelera dois passos na direção do crucifixo e volta ao rubro:
- Por Deus, o senhor sabe que está reprovado; não estudou, é isto, repete ó ano; Jesus, ali, é testemunha de que eu não posso fazer nada...Vamos lá, ponto número 12.

Olha gente, aquele foi meu dia de sorte. De pé, ao quadro, acertei a primeira e a segunda questão. Afirmo que acertei também a terceira. Só que esta, o Machado recusou-se a conferir. Ao terminá-la vi que ele estava de costas para mim. Suspense na platéia. Ele gritou:
- O senhor terminou?
Terminei, Professor. E ele ainda de costas:
- A resposta está certa? Sim, Professor, está correta.
- Então apague porque eu não quero ver! Apague! Apague! Meio decepcionado (eu queria que ele visse) apaguei tudo.

Rigoroso, ele era também tão bom que, notando o correto desenvolvimento da última questão, temeu que algum cochilo meu, a termo, lhe “anunciasse sentença bruta”. Queria aprovar-me.
Aparelhou-se comigo e, erguendo na palma da mão esquerda o livro de notas à altura do meu nariz, escreveu nele o NOVE VÍRGULA CINCO da minha redenção.
Claro que, no ano seguinte, tirei notas melhores em matemática. A cena foi pedagógica.

Por essas e outras, por tudo que ele representa para nós, certamente que o Professor Machado merece um monumento em Leopoldina. Um monumento tão expressivo quanto o que ele edificou em nossos corações com seus símbolos, suas aulas inesquecíveis, seu trabalho cintilante, sua enorme dignidade.
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(Publicada no jornal Reencontro, de junho de 1996)

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