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sábado, 23 de julho de 2011

Um Belo Enterro #

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Julho, 2011

Alcebíades Liberato só veio a merecer exéquias dignas de sua biografia porque faleceu na tarde de uma terça-feira de Carnaval. Muita gente chumbada no velório, pessoas parecendo não entender o que se passava, lágrimas (algumas de puro charme) valorizadas em purpurina, bateção de caixa e conversa papalva entrando pela porta da sala.

Em Vila Bacambira, até bem pouco tempo, os velórios eram feitos em casa, com lençol roxo e imagem de Nossa Senhora da Boa Morte na janela de frente. O saimento se deu no momento aprazado, nove da manhã da quarta-feira de cinzas, devendo o séquito cruzar a Praça da Padroeira – àquela hora ainda tomada por carnavalescos retardatários, uns já estendidos no chão, outros ainda trocando pernas sob o comando de miolos encharcados - receber a bênção de Pe. Eustáquio, na Matriz, e, uma vez encomendado o corpo ao Pai Celestial que prematuramente o convocara, seguir mais cinco quarteirões até o Campo Santo, onde baixaria ao jazigo perpétuo da família Gaspar d`Olivares, cuja nobreza o finado ocupante daquele caixão barato se encarregara de dilapidar durante a vida. A parca fortuna que a ele chegou do espólio do avô - o abastado Barão do Café, Altamiro d`Olivares - consumiu-a no jogo e no culto às damas de vida móbile.

Os tempos mudam! Há muito entraram em extinção os fidalgos do Segundo Reinado. Minas Gerais padeceu Reforma Agrária pela lei das sucessões, de tal sorte que netos de grandes sesmeiros viraram micro-sitiantes de botina rinchadeira, e a própria Vila Bacambira já não pranteia defuntos em luxuosos domicílios, velando-os, ao atacado, na Capela Mortuária erguida ao lado do Campo Santo. Aliás, “Capela Mutuária” para os menos avisados, vítimas da confusão semântica criada pelo gerente local do Banco do Brasil, com sua mania de chamar de “mutuário” quem apanha dinheiro emprestado no Banco.

Mas voltando ao sepultamento, o ataúde não avançou dez metros e já começou a receber figurantes espúrios: do bar “Safadinha Mirela”, repleto de foliões pinguços, brotaram logo Dr. Lalim e Dr. Mumum, médicos locais, fantasiados de libélulas, erguendo acima das cabeças latinhas de cerveja e dançando “mamãe eu quero”... Nem viram o caixão. No calibre em que se achavam, pessoas caminhando juntas era ziriguidum. Aderiram, requebrantes, à procissão. Atrás deles, outros, mais outros, outros mais...

O enterro descambou de vez pra cordão carnavalesco. Toda a avenida principal de Bacambira entrou na folia, uns ignorando tratar-se de funeral, outros conscientes, mas se lixando pra coisa. Faltou “clima” para entrar com o extinto na Igreja. Padre Eustáquio trancou a ferros a porta da Matriz e deitou-lhe escoras. Alguém teve o bom senso de puxar as duas alas momescas direto ao cemitério. A viúva, Dona Cidoca, chorava inconsolável:
-Não tinham o direito de fazer isto com o meu Liberato!... Ele merecia mais respeito!...

Acudiu-lhe o primo Fuínha, emérito piadista, que também rebolava a dois passos do caixão. Abraçou Cidoca pelos ombros e, com voz mansa, buscou amainar o luto da viúva:
-Não chore, Cidoca. Ele deve estar feliz lá de cima. Ninguém gostava mais de uma bandalha que seu maridão. Sei que você gostava dele, mas me permita a sinceridade: “Aquilo” era safado, Cidoca! Pilantra, Cidoca! Não saia da Zona, Cidoca, e você em casa, costurando pra fora e cuidando das crianças... Um vagabundo nato, Cidoca! Mas gostava de alegria; merece esta festa... Sorria, Cidoca, levanta esse astral!

Já passando dos soluços ao riso, Cidoca empurrou pra lá o pândego do Fuínha e caiu na gandaia. Aí, já viu, né, com a viúva aderindo, liberou geral e o enterro degringolou de vez. O que entrou pelo cemitério foi, sem dúvida, um imenso bloco carnavalesco.
Eis, no entanto senão quando, o borracho Dr. Lalim, de latinha de cerveja em riste, assoma o mausoléu dos Olivares e revela-se palavroso:

-Povo de Bacambira! Não se dá sepultura, assim, sem mais nem menos, a uma pessoa querida, honrada e de invulgar pundonor, solidária e companheira, como nosso conterrâneo Alcebíades Liberato de Antióquia. Seu féretro respeitável e imaculado merece despedir-se de cada cidadão desta terra em cortejo honorífico por todas as ruas da progressista Vila, à qual tanto amou e serviu. Prestemos, pois, a este bacambirense de superior coturno, o preito de nossa gratidão e reconhecimento. Que o cortejo transite por toda a Bacambira – passando, sim, também pela região do inferior meretrício, pois “atire a primeira pedra aquele que nunca pecou” - e somente ao por do sol deste luminoso dia, obedientes ao frontispicial comando, “revertere ad locum tuum”, inscrito nos umbrais desta derradeira estalagem “pos mortem”, deitaremos sobre o corpo do irmão que se ausenta o conforto da terra dadivosa onde teve ele a subida glória de nascer, viver e hoje tão desafortunadamente fenecer!

Portanto, povo da minha terra, “anarriê” com este precipitado sepultamento! É o extinto que vos exorta nestas palavras que profiro por mim, mas falam por quem dorme jungido ao sepulcral silêncio.

Resultado: o desfile retomou as ruas em formidável estrépito. Cães vadios buscavam refúgio sob os veículos. As janelas persignavam-se. Ao final do dia o caixão baixou sepultura bambeado nos pregos. Bacambira viveu um belo enterro.
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(Publicado em 21.07.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

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