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É isto aí, Ascânio. Imagine que hoje pela manhã, ainda à mesa do
café, Jalcira e eu falamos de você e Elvira. Principalmente daquele passeio que
vocês nos proporcionaram ao litoral do Espírito Santo. Impossível esquecer a
praia rasinha de Piúma, onde a gente entrava no mar e ia andando toda a vida na
direção do continente africano e nada de molhar o joelho. Água apenas nos
tornozelos.
Ora, se me lembro! Vocês foram ótimas companhias. Elvira e eu
adoramos aqueles dias agradáveis com jogo de canastra entrando pela madrugada,
cerveja e Peroá com mandioquinha frita na praia. Pena que não bisamos a
oportunidade.
É a vida moderna, essa desagregadora de afinidades!
Quanto à Elvira, não poderia estar melhor. Foi recepcionada,
ontem, por uma grande amiga de solteira, a Antonela, em cerimônia linda,
segundo acaba de me relatar o Lulu Batuta.
− Ah, sim, conheço, o seu
chofer.
Exato. Lulu Batuta é baiano do interior que, muito ao contrário do
estereótipo atribuído aos baianos, nunca foi chegado a festas, a coisas
estrepitosas. Cara circunspecto, sempre na dele, que nem conhece a buliçosa
Salvador. Pois foi este homem que ficou fascinado com a toarda que fizeram,
ontem, em homenagem a Elvira. Aquela pá de gente ligada, alegre, cantando,
dançando... Todo mundo de Abadá branco!
Claro que a mais empolgada na recepção foi a mãe dela, Da. Lilá, a
responsável, aliás, por verdadeiro tributo à pessoa da filha. Incrível, cara!
Festa regada a espumantes requintados e canapés da mais erudita facção
culinária.
Sinta a criatividade da Sogrona. No auge da confraternização, que
até poderia ser dada como fashion – traço incorrigível da personalidade de Da.
Lilá − surgiu ela com uma surpresa. Erguendo, com a mão direita, a
toalhinha de linho que cobria uma bandeja de prata espalmada na mão esquerda,
descerrou bem na face de Elvira sua tradicional Broa de Fubá feita com banha de
porco e erva doce − a guloseima que minha adorável esposa ama de paixão!
Apoteótico! Não tem outra palavra: Apoteótico! Todos os
convidados batendo palmas, cantando o “Parabéns pra você”, o “Com quem será”...
De arrepiar! Do jeito que o Lulu Batuta me contou, cheguei a me emocionar.
Verdade, cara, a me emocionar!
− Sabe que, em mim, Broa de Fubá dá azia?
Em mim também, mas Elvira sempre foi vidrada em Broa de Fubá.
Criada na fazenda, não é... Como disse o Batuta, não tinha pra mais nada.
− Pera aí, Ascânio. Vamos chamar nossa conversa à ordem. Pode não
ser o que você realmente disse, mas estou entendendo que seu chofer, o Lulu
Batuta, teria conduzido Elvira, sua esposa, a um passeio à Bahia, onde
atualmente residiria sua sogra. Isto me deixa muito feliz, meu velho!
Apenas confuso porque a notícia recebida lá na repartição é que sua esposa, Elvira,
faleceu ontem, de disparada cardíaca, e que o enterro seria daqui a meia hora,
exatamente neste cemitério onde estamos.
Não por outro motivo, aliás, aqui estou – pelo visto trazendo
condolências precipitadas, por mim e pelos colegas que não puderam vir. Ao
chegar, há pouco, não tive dúvida de que esta seria a mesma razão de
sua presença neste velório. Sepultamento que de agora em diante passo a não imaginar
de quem seja. Não obstante, contratempos à parte, é um alívio saber que sua
mulher está viva, bem de saúde e a passeio na terra de Ivete Sangalo.
Não exatamente viva. Não exatamente na terra de Ivete. Sob
visão profana, sim, Elvira faleceu ontem e nós levaremos seu corpo à sepultura
daqui a pouco. O que acabo de lhe passar é a alegria que experimentei, há
poucos minutos, ao saber, pelo relato de Lulu Batuta, que minha companheira de
tantos anos, apesar de formalmente morta, continua consciente, feliz, em
animadas companhias lá no outro plano da existência.
Não pode haver conforto maior, cara. Sempre digo que o ser humano
não se conhece; sabemos muito pouco do que somos e do que podemos. O Batuta não
me contou de ouvir falar: ele teve uma visão pessoal da chegada de Elvira
aos umbrais do Paraíso!
− O motorista.
Sim, o Lulu Batuta. Ele é também Pai de Santo, entende, num
terreiro muito bem frequentado – inclusive por advogados e militares reformados
− ali em Vila Narjara. O que ele diz você pode escrever, Galdino.
− Claro, claro.
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