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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Um Carinho Especial

***
Novembro, 2011


Estive fora no dois de novembro. Para mim, nunca foi uma data qualquer. Desde criança já ia com meus irmãos e meus pais ao cemitério, no Finados, levar flores à “sepultura do vovô”. Sempre chovia, o campo-santo (que, em Leopoldina está mais para “morro-santo”) virava uma desordem lamacenta, um tremendo transtorno. Na volta, invariavelmente, o cuidado de minha mãe:
– Não entrem com os pés sujos... Deixem os sapatos aí fora!

Ainda hoje, quando não me desincumbo da visitinha à derradeira morada dos meus convocados ao alto, começa a trilar aquele desconforto renitente do dever não cumprido. A gente se condiciona à ideia de que nossos entes queridos estão lá, ávidos de atenção, prontos a nos acudir. O fato é que precisamos ilusões para viver. Se forem mais que ilusões, melhor: a fé elimina incógnitas filosóficas. Mas se o imperativo da razão nos abjura a utopia, surgem tormentos a reclamar escolhas, ainda que imprecisas e provisórias.

Lembro muito aquela cena do filme, Zorba, o Grego, em que o personagem de Antony Quinn, dá as costas à mulher amada ao constatar sua morte. Afasta-se do cadáver e diz:
– Não é mais ela!

Ali, Zorba espanca a dor num rompante de racionalidade, mas nunca é tão fácil ao ser humano dispensar o amparo providencial das ilusões. Faz-nos bem acreditar na perenidade da alma por uma razão bem clara: nascemos para viver; não nascemos para morrer. O Criador parece ter-nos infundido a convicção de que a morte é um despropósito a ser resolvido. Um dado acidental da criação.

Mas se vocês pensam que com este papo melancólico estou a fim de arruinar nossa Conversa de hoje, estão enganados. Escolhi apenas o introito à história de um sujeito que leva a morte na brincadeira. Ou, pelo menos, parece que leva. Vejam só: aconteceu a primeiro de novembro do ano passado.

Sem mais nem menos, apareceu aqui em casa – em rápida passagem pela cidade − um desses parentes distantes que a gente conhece de ouvir falar e nunca imagina andar por perto. Logo na apresentação descobrimos nele um cara legal, prosa agradável, casado com uma prima, com quem também perdemos contato. A fama do sujeito, na família, é de ser meio escorregadiço na maionese, parafusos intracranianos meio frouxos. Preconceito, talvez, por sua veia artística, constando ter trabalhado no circo quando jovem. Hoje, segundo diz, cria peixes ornamentais numa chácara em São Paulo. Passa dos cinquenta e está viúvo há uns dez anos.

Minha prima, a ex-esposa dele, foi artista plástica de renome, mulher muito bonita, elegante, produzia óleos inspirados. Do casal sempre se soube viver muito bem, “um feito para o outro” – se me socorre o rifão batido.

Pois bem, era véspera de Finados e, por delicadeza, mas também pelo prazer que nos daria, minha mulher e eu o convidamos a passar a noite em nossa casa, descansar, e viajar no dia seguinte. Caía a tarde e o destino dele, Campinas, em São Paulo, implicava dirigir setecentos quilômetros à noite. Muito perigoso – argumentamos.

Ele agradeceu o convite, mas não ficaria porque tinha um “compromisso inadiável” para a manhã do dia seguinte, no cemitério de sua cidade: “dar uma mijadinha na sepultura da Dinah”...
-Êpa! O quê!
Tivemos que rir, claro. Que brincadeira mais escrachada de maridão saudoso de sua amada!... Ponderado, todavia, ele nos confiou sua história.

Certo dia – disse – assim, meio irresponsavelmente, eu e Dinah combinamos que o primeiro de nós a falecer receberia, todo ano, do que ficasse vivo, “uma mijadinha na sepultura”... Nada de levar a urina num frasco e derramar lá; não, isto não é mijar. O trato era verter o xixi in natura...
Pelo sim, pelo não – aduzia ele − agrada-me vir cumprindo esse compromisso com ela nos últimos anos e é, exatamente, o que farei amanhã.

Objetamos quanto ao pudor público, o constrangimento diante de tantas pessoas em visita ao campo-santo no finados...
−Sem problema, disse ele. Uso uma capa tipo sobretudo. Dá para disfarçar bem. E acreditem, faço isto num gesto de carinho, do fundo de minha alma! Carinho muito sincero, tá.
Pareceu emocionar-se. Ficamos pensando na boa ideia do ilusionismo com o sobretudo.

Caspita! Sorte da prima, que morreu primeiro. Para ela, mulher, certamente seria mais complicado.


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(Publ. a 27.10.2011,em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena)

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