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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Enterro do Libânio #

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Dezembro, 2010

Proparoxítonos esticados são meio confusos. Não custa lembrar que claustrófobo ou claustrofóbico é o indivíduo que tem pavor doentio por lugares fechados. Estamos falando do mal que sempre atormentou a vida do “guarda-livros” Libânio, carioca do Lins de Vasconcelos, de cuja morte aos noventa anos tive infausta notícia, recentemente. Expirou debruçado sobre a marmita de seu próprio almoço, à mesa de trabalho, num escritório da Rua da México, no Rio de Janeiro.

Não procurem por “guarda-livros” nas páginas amarelas. É como se denominavam os contabilistas antigos, encarregados da escrituração dos registros de comércio. Libânio, contador experiente e atualizado, sempre brincou com a curiosa designação.

Nossa amizade vinha dos anos 50, numa empresa de São Cristóvão, onde ingressei como “estafeta” (podem ler boy), ainda menor. Foi meu primeiro chefe. A luta pela vida nos separaria, mas a amizade ficou. Corri à Rua México quando soube de seu “passamento”, e foi duríssimo para mim vê-lo, também duro, esticado no chão do escritório com um catálogo telefônico sob a nuca.

Não imaginava que aquele quadro lamentável marcava apenas o início de uma tragédia macabra que o destino reservava ao meu velho chefe. Um filme de horror! Não houve um óbito na Rua México, naquela tarde de outubro. No linguajar médico, “Libânio fez um quadro de apoplexia” e foi dado como morto por seus funcionários e – fatalidade! – por um médico desavisado. Enterraram-no vivo!

A filha mais velha, Rita Santana, conta que esta sempre fora a grande neurose do pai. Ele era claustrofóbico – explica ela. Tinha pavor de, um dia, ser enterrado vivo. Tanto assim que firmou um pacto com o filho caçula, segundo o qual este colocaria, em seu caixão, um telefone celular, com a bateria carregada (insistia muito!) ao alcance da mão direita. Libânio era canhoto e só discava com a esquerda. Se ocorresse o problema lá embaixo...

Dizem os mais velhos, em Minas, que se pensamos ou falamos alguma coisa ruim, devemos ter muito cuidado: os anjos, naquele momento, podem estar cantando “amém”... Aí, ó! Nunca se sabe. Embora os anjos sejam nossos protetores.

Uma coisa é certa. Justo uma modernidade - o telefone celular – iria trair a confiança do atribulado Libânio. Logo a ele que sempre desconfiava de novidades tecnológicas, que jamais trocou sua velha máquina Remington por um computador... Caneta esferográfica até que usava, mas só “apunha” sua assinatura em documentos com a preciosa caneta-tinteiro, Parker-51, que o acompanhou por toda a vida. Cético, mas entre o desespero e a tecnologia suspeita, confiou num pré-pago.

Assim foi que o pavor inicial de acordar dentro de um estojo não o impediu de lembrar-se do trato com o filho. Tateou com a mão direita e lá estava o celular. A luzinha que se acendeu ao pegá-lo não deixava dúvida: bateria carregada.

Desafortunadamente, no entanto, ao ligar ecoa uma mensagem gravada:
- A Vivo informa que seus créditos acabaram... bip, bip, bip...
Maldição! Maldição! Hã? O que foi que eu disse?...

Libânio passou a ouvir impactos de martelos quebrando os tijolos da sepultura. Abriram o sepulcro! Arrastaram para fora o esquife. Abriram a tampa! Eram ladrões de cemitério, de alicates à mão, interessados no ouro das próteses dentárias do extinto. Acontece no Brasil...

Na delegacia, Libânio alegou não ter condições de descrever a fisionomia dos meliantes. Disse apenas que, ao sentar-se no caixão, quatro vultos se escafederam em desabalada carreira por entre os mausoléus, na velocidade que o diabo emprega para fugir da cruz.

O delegado compreende, mas acredita que Libânio possa estar mentindo por gratidão aos "enviados" que o libertaram...
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(Publicado em 16.12.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

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