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Maio, 2010
Acho que vem da Grécia antiga, de lá dos dois mil antes de Cristo, o rifão segundo o qual devemos tratar de maneira diferente as pessoas diferentes. Soa preconceituoso, mas nem sempre é. Não tem sentido, por exemplo, advogados e parlamentares − para ficar no exemplo de duas classes de pessoas muito caras ao coração do grande público − acostumados aos “Vossas Excelências” do dia-a-dia de seus misteres profissionais, dirigirem-se aos porteiros de seus prédios com empáfia do tipo: Sr. Severino, estou viajando hoje, Vossa Excelência, por favor, coloque debaixo de minha porta a correspondência que chegar... Delicado, sim, mas bastante inadequado, se não estamos em Portugal, não acham?
Casos há, entretanto, em que o “tratamento diferenciado” resvala pela humilhação e, aí, torna-se discutível. Aconteceu numa comarca do interior de Minas e eu estava lá.
Conhecido empresário local, titular de considerável fortuna, mas pessoa bastante comunicativa e querida, foi responsabilizado judicialmente pelo atropelamento de uma mulher por um dos muitos caminhões de sua frota.
No dia da audiência de julgamento o enorme ciclo de amizades e pessoas simpáticas ao demandado se acotovelavam no fórum local, menos por curiosidade que por um gesto instintivo do compadrio interiorano.
Importante dizer ainda que Ozório - este o nome do Réu - tinha certa qualidade que o destacava: era um sujeito engraçado, falava rápido repetindo palavras nervosamente, parecendo ao mesmo tempo espirituoso e ingênuo. De ingênuo não tinha nada e era principalmente isto que as pessoas adoravam comentar e achar graça.
Primeira pergunta do juiz:
- O nome do senhor, por favor?
- Ozório, sim, Ozório, é, meu nome é Ozório, Ozório sim senhor... é, é, Ozório...
Os sobrenomes, para ganhar tempo, o juiz preferiu não conferir...
A audiência ia vagarosa, depoimento do motorista, das testemunhas, peritos, etc., quando, lá pelas tantas entra em cena a copeira do Fórum com o cafezinho da praxe. Serviu o Juiz, o Promotor, os Advogados e... o Réu, claro, afinal não estava ali naquele “banco” uma pessoa qualquer. Era o “Seu Ozório”!
Mas no que Ozório pega o pires com a mão esquerda e, com a direita, leva a xícara aos lábios, o juiz berra de lá:
- Pare, pare! Tome essa xícara, Ciléia. Réu não bebe café durante julgamento! Tome a xícara dele.
E o Ozório, obediente, devolvendo rapidinho a louça à bandeja:
- Pois não, Excelência, pois não, Excelência... Réu não bebe café, Réu não bebe café, Réu não bebe café...
Não consigo conter o riso quando esse episódio me vem à mente. Acho-o engraçadíssimo, principalmente por conhecer as pessoas envolvidas. Em meus tratos à bola, todavia, nunca tive certeza absoluta de que a atitude do magistrado tenha sido adequada. Talvez sim.
Para quem acha que o juiz foi pedante além da conta, tente imaginar “uma fotografia”: Juiz e Promotor tomando cafezinho com o Réu antes do julgamento... Esquisito, não é?
Talvez, ali, naquela condição de Réu, o bom Ozório realmente devesse ser tratado da maneira “diferente” como o foi. O juiz terá sido apenas zeloso da liturgia de seu cargo, da reverência devida à Justiça, e, sendo honesto, achou importante “mostrar sua isenção” diante daquela pessoa de nível social e econômico acima da média.
Ou entendeu que viria ao caso salvar as aparências. "À mulher de César não basta ser honesta; tem que parecer honesta."
Muito contrariamente aos cuidados do meritíssimo julgador interiorano, vejam quantos exemplos constrangedores nos oferece o atual governo, lá de sua alta cúpula – quando faz vistas grossas ao exército de “fichas sujas” à sua volta.
Sem a menor cerimônia nomeia, para cargos de fiscalização, pessoas envolvidas com entes fiscalizados, fingindo não dar bola aos conflitos de interesse; negocia apoio com parlamentares, bandidos óbvios; coloca verdadeiras raposas para vigiar galinheiro em órgãos administrativos onde corre dinheiro alto. Simplesmente inexplicáveis são certas nomeações, para Agências Reguladoras, de pessoas provenientes das próprias empresas reguladas. Assim não dá.
A gente sabe que governabilidade se constrói na partilha do bolo. Mas diacho! Qualquer um serve para ser parceiro do governo? Ninguém provoca constrangimento? Minha sugestão é que na hora de confiar a coisa pública e de trazer para junto de si um novo colaborador, o governo tenha em mente a lição do juiz mineiro:
-Réu não bebe café.
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(Publicada a 28.05.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
sexta-feira, 28 de maio de 2010
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