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Introdução
André Franco Montoro (1) em sua cátedra magistral, leciona que:
"Justiça Social é nome novo de uma virtude antiga - justiça geral ou legal - que Aristóteles estudou detidamente e exaltou, nos seguintes termos:
Nem a estrela da manhã, nem a estrela vespertina são tão belas quanto a justiça geral.
Velho de mais de vinte séculos, esse conceito é, entretanto, de vigorosa atualidade. Podemos dizer, quando se aproxima o ano 2000, que praticar essa justiça é despertar em nós o sentido social que um século de individualismo quase destruiu."
É sob essa inspiração que já se erigira no Código de Napoleão (1804) que surge, no Brasil Código Civil de 1916, buscando abarcar, nas palavras de Tepedino (Temas de Direito Civil) "todos os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser titular".
O individualismo a que se refere o professor Montoro remonta, portanto, às primeiras influências hauridas pela legislação ocidental aos princípios liberais, principalmente via Código de Napoleão.
Observe-se que a doutrina liberal se desenvolveu essencialmente no Século XVIII, em oposição ao absolutismo monárquico e ao colonialismo. Observava como pontos principais que o Estado devia obedecer ao princípio da separação dos poderes; que o regime seria representativo e parlamentar; que o Estado se submeteria ao Direito, que garantiria aos indivíduos direitos e liberdades inalienáveis, especialmente o direito de propriedade"
Entretanto, como anota Gustavo Tepedino (2), tal quadro de individualismo oitocentista
"começa a se redefinir, gradativamente na Europa já desde o início do Século XX, e no Brasil depois da década de 30, com a maciça intervenção do Estado na economia e com o processo, daí decorrente de restrição à autonomia privada ao qual se associa o fenômeno conhecido como dirigismo contratual."
É relevante ter em conta que nosso Código Civil de 1916 passou a não satisfazer a demanda legal que a sociedade que se modernizava entrou a exigir, dando-se a proliferação de leis especiais que surgiam para atender insuficiências da lei substantiva civil, como se exemplifica pelo surgimento da Lei do Inquilinato, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei do Divórcio, etc.
Ainda na observação de Gustavo Tepedino (3), "a evolução do cenário econômico e social passou a exigir do legislador uma intervenção que não se limita à tipificação de novas figuras do direito privado (antes consideradas como de direito especial), abrangendo, ao revés, em legislação própria, toda uma vasta gama de relações jurídicas que atingem diversos ramos do direito."
Sob a óptica do emérito Orlando Gomes, o propósito era "dar ao equilíbrio social sentido mais humano e moralizador", o que certamente conduzia a uma política legislativa de "vigorosa limitação da autonomia privada".
Essa mesma evolução econômica e social vai se refletir no Brasil sobre o legislador constituinte de 1988, imbuído da necessidade de conceber e construir um Estado Social moderno.
Sem amparo concreto no âmbito do direito privado, valores essenciais da sociedade foram buscar abrigo em normas constitucionais, num efeito de flagrante publicização do direito civil.
Já procedia, também, de Orlando Gomes (4) o diagnóstico. de uma tendência, nos últimos tempos,
“da emigração desses princípios para o Direito Constitucional. A propriedade, a família, o contrato, ingressaram nas Constituições. É nas Constituições que se encontram hoje definidas as proposições diretoras dos mais importantes institutos do direito privado".
E aqui, quando se defere mais força ao Estado, não é no sentido de que ele volte a oprimir como antes, mas, ao contrário, para que ele exerça sua função reguladora, distribuindo melhor a igualdade e promovendo a fraternidade entre as pessoas, com o fim de assegurar entre elas "um padrão ético de confiança e lealdade".
Desenvolvimento
Tendo este trabalho como intento examinar a incidência dessas mudanças filosóficas sobre o contrato propriamente dito, impende desde logo afirmar que uma importantíssima alteração se verificou no conceito da igualdade formal entre as partes, a partir dessa nova ordem que reclama a consideração de valores eminentemente sociais nas relações de contrato.
Em verdade já vinha de Remi Lacordaire (1802-1861) a constatação de que sempre que o forte contrata com o fraco, "é a liberdade de contratar que escraviza, é o judiciário que liberta".
Com o advento do Estado Social, assinalado entre nós pela Constituição de 88, passa a ser considerado o contrato não uma lei inflexível entre as partes, como era inexorável na aplicação da fórmula pacta sunt servanda, mas uma consertação passível, sempre, de ser afeiçoada à justiça devida ao mais fraco, tão pronto quanto verificado desequilíbrio sensível entre os pactuantes. Vai ocorrer a incidência, em tais casos, da cláusula rebus sic stantibus, como convém ao império da Constituição vigente, preocupada, não com a garantia de liberdades formais, mas com a promoção da justiça social.
Segundo síntese da Professora Fabiana R. Barletta (5) com créditos a Luis Roberto Barroso e a Michele Giorgianni,
"com o Estado intervindo cotidianamente na legislação, cai por terra a summa divisio segundo a qual o Direito Público é aquele emanado pelo Estado, voltado para objetivos de interesse geral, em oposição frontal ao indivíduo. Atualmente, as intervenções estatais visam exatamente proteger o indivíduo em sua dimensão comunitária. Não há mais como sustentar que o Código Civil é o berço do protecionismo à pessoa porque a Constituição da República chama para si matérias que visam defendê-la precipuamente, seja nas relações proprietárias, seja nas relações familiares e também nas relações contratuais interprivadas".
É a transformação da Constituição garantidora das liberdades formais, já agora incorporando a função de promover a justiça social em um novo ambiente econômico¬sociológico, inclusive com intromissão moderadora na ordem econômica, interferindo diretamente nos contratos, que a esta são afetos. Intervenção esta muito menos preocupada com o "negócio jurídico" abstratamente considerado, do que com seu conteúdo material imanente e com a verdadeira vontade subjacente inspiradora do pacto.
De tal modo se impõe esta nova visão dos Contratos, ao ponto de o Professor da UFAL, Paulo Luiz Neto Lobo (6) ver como morto por consumpção ou senectude,
"absolutamente imprestável e inadequado, o modelo liberal de contrato, porque incompatível com uma função que ultrapassa a autonomia e o interesse dos indivíduos contratantes".
Aliás, a inconsistência dos contratos tradicionais não é recente e vinha sendo enfrentada, em pleno regime do Código Civi1 de 1916, por leis extravagantes e pela doutrina, seja com base na "boa-fé", na "lesão ao direito", ou na cláusula rebus sic stantibus e seus consectários da "onerosidade excessiva", no "enriquecimento ilícito", na "teoria da imprevisão", etc.
Chegou-se logo a um grau irretornável de dirigismo contratual com a intervenção do legislador na própria liberdade de contratar, nas hipóteses de impossibilidade de uma parte poder escolher a outra parte com que contrata, como é o caso da concessionárias de serviços públicos; nas hipóteses em que a própria lei estabelece, no todo ou em parte, regras contratuais, como no inquilinato e nos empréstimos bancários; e nas hipóteses em que a lei impõe contratos padronizados.
Por último, desnaturando quase que por completo a teoria tradicional do contrato, surgem as preocupações com os direitos transindividuais - de pessoas alheias à relação contratual - como os direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
Entre nós, hoje, talvez se situe nas relações de consumo a intervenção maior do poder público na prática contratual.
Buscando uma síntese sobre a incapacidade da legislação contratual clássica de lidar, nos dias que correm, com os problemas inerentes à proteção do contratante débil, conclui o Prof. Paulo Luiz Neto Lobo (7), antes citado:
"Em suma o sentido e o alcance do contrato reflete sempre e necessariamente as relações econômicas e sociais praticadas em cada momento histórico. O modelo liberal e tradicional, inclusive sob a forma do negócio jurídico, é inadequado aos atos negociais existentes na atualidade, porque são distintos os fundamentos, constituindo obstáculo às mudanças sociais. O conteúdo conceptual e material e a função do contrato mudaram inclusive para adequá-lo às exigências de realização da justiça social, que não é só dele mas de todo o direito."
Conclusão
O contrato, nos moldes em que o estado liberal o concebia, e que ainda pode ser considerado tradicional, já não mais corresponde aos anseios da sociedade atual, revelando-se anacrônico em sua essência. Apesar da assimilação das mudanças às vezes se mostrarem incipientes, o novo conceito de contrato alicerçado em nosso ordenamento jurídico, principalmente sob inspiração constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, sem qualquer exagero, traduz uma mudança de concepção nos parâmetros de vida do cidadão brasileiro, tanto nas relações privadas, quanto naquelas com o Poder Público.
Sendo certo que, em que cada opinião por nós emitida, em que cada telefonema por nós atendido e em que cada atitude por nós tomada, podemos, ainda que involuntariamente, estar consumando hoje a celebração de um contrato, isto nos dá bem a medida do quanto pode resultar distorcido o requisito da vontade, nos diferentes modelos hodiernos de contratação.
Esta nova realidade social impõe que o contrato se transforme "para se adequar às exigências da nova realidade, passando - no dizer da Professora Cláudia Lima Marques (8) -
de espaço reservado e protegido pelo direito para livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas”..
Compete ao homem adaptar-se à realidade que à sua volta se transforma, preferencialmente lançando à terra, nesse processo de adaptação construtiva, apenas as sementes dos melhores frutos, com a fé inabalável dos que fecundam a boa safra, sob pena da semente ter sido lançada em vão.
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NOTAS:
1MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 25a ed., 2000. p. 212
2 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, Ia ed., 2001. p.3
3 TEPEDINO. Gustavo. Op. ciL, p. 4
4 GOMES, Orlando. Doutrina: A Agonia do Código Civil. P:5, n.o 7, Código e Constituição.
5 BARLETTA Fabialla Rodrigues. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR 2001, p. 285
6 LOBO, Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais: RT-722, dez. 95, p. 42
7 LÔBO. Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais. RT-722, dez. 95, p. 44
8 NOVAES, Aline Arquette Leite. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR 2001, Ob. cit. p. 17/18
BIBLIOGRAFIA
1 - MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 25" ed.
2 - TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro:
RENOVAR, 1ª. ed., 2001.
3 - GOMES, Orlando. Doutrina: A Agonia do Código Civil. P. 5, n. 7, Código e Constituição
4 - BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2001.
5 - LOBO, Paulo Luiz Neto. Revista dos Tribunais. R T -722, dez. 95, p. 42
6 - LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em www.com.br/doutrina/texto.asp?id=507 (acesso em 15.05.03)
7 - NOVAES, Aline Arquette Leite. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2001.
8 - MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Biblioteca do Direito do Consumidor, v. 1.3 ef. Ver. Atu. Amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998
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(Este estudo foi realizado para o curso de Pós-Graduação em Direito Civil Constitucional – Faculdade Doctum, ano 2004. Orientadora: Profª Fabiana Rodrigues Barletta)
sábado, 22 de maio de 2010
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