***
Outubro, 2009
Não apenas o homem, animal gregário por excelência, tem deixado o campo rumo às cidades. Percebo que uma boa leva de pássaros, antes de hábitos rurais, também está optando pela funcionalidade da vida urbana. A chegada deles é gradual, tranqüila. Nada que lembre aqueles sustos dos corvos de Hitchcock.
Não me refiro a pássaros tradicionalmente urbanos como o pardal, esse europeu comedor de bichinhos, há muito tempo abrasileirado, que o prefeito Pereira Passos, do Rio de Janeiro, mandou vir de Lisboa em 1903, soltando-o no Campo de Santana, para ajudar o sanitarista Oswaldo Cruz a acabar com insetos transmissores de doenças tropicais.
O pardal tomou conta do Brasil e da América. Virou praga, mas fez o que dele se esperava. Pena não dar conta de acabar com o mosquito da dengue, tarefa, quem sabe, para algum outro passarinho mais chato do que ele.
Nem falo da pomba rola, simpática brasileirinha urbana, com seus ninhos sem capricho nas forquilhas dos oitis, prima dos pombos comuns, esses porcalhões europeus introduzidos no Brasil sem século XVI, grafiteiros escatológicos de estátuas e monumentos.
O que eu observo é que muitas outras aves caíram na corrente migratória do êxodo rural. Nunca vi tantas maritacas e papagaios citadinos em algazarra sobre nossos telhados urbanos. Tradicionalmente ariscos, distantes, cruzando alto os céus das fazendas, esses tais psitacídeos nidificam agora nos beirais das casas da rua, disputando vagas com garrinchas e andorinhas. Somente na minha rua fixaram domicílio dois casais desses migrantes verdes não inscritos no PV de Dona Aspásia Camargo e do ministro Carlos Minc.
Sabiás e sanhaços, então, nem se fala. Tornaram-se condôminos de pardais e bem-te-vis nos galhos apartamentais de mangueiras e abacateiros de quintais. Saíras azuis e verdes, lindíssimas, pinturas peroladas como nos automóveis de luxo, frequentam, apressadas, meus pés de amora e de pitanga.
Melros, goderos, coleirinhos, tizius, cigarrinhas, canarinhos-da-terra e bicos-de-lacre, aos bandos, aparecem quando o capinzal dos lotes vagos e das encostas produz semente.
Como é próprio da mãe natura, atrás dos justos vêm os predadores. Não por acaso o olhar irrequieto dos pássaros, aquela vigilância periférica constante e nervosa. Gavião-carcará, gavião-pomba, gavião-carijó, ponderam mergulhos fatais, espreitando-os do alto das palmeiras e das antenas de TV.
À noite, corujas nada filosóficas cruzam a escuridão com seus piados sinistros. São as aves de rapina! Diria aquele ministro do Collor: Viver, também na cidade, é perigoso para qualquer ser humano.
Já o repulsivo urubu, carnívoro robusto, sem inimigos e sem problema de estômago, há muito detém cidadania urbana. O universo de suas preocupações se resume a atropelamentos caninos e a putrefatos ao ponto, nos riachos e nos monturos. Mas chega a parecer imponente e belo quando visto de longe, lá no céu, pegando caronas rodopiantes nas correntes malodorosas ascendentes dos lixões.
Tanto quanto na vida, o urubu quando voa alto é um beneficiário das aparências.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publicada em 22.10.2009 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/
e no jornal LEOPOLDINENSE)
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.