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Outubro, 2009
O ascensorista do meu prédio, um jovem estudante, quis saber “de que lado estou” naquele impasse político de Honduras. A pergunta veio com uma ressalva onerosa: “O senhor que sabe das coisas...”
Como falar de algo tão complicado numa descida de elevador?
-Bom, lá em baixo você desliga a cabine se não houver gente esperando, tá.
Vamos nos situar.
Esta é uma região do mundo chamada América Latina. Aqui, segundo um velho e sábio político baiano, Otávio Mangabeira, a democracia é uma plantinha tenra, muito frágil, que se não for bem cuidada murcha e morre.
Nas duas décadas finais do século passado, com o fim de regimes ditatoriais em nações importantes do continente, como Brasil, Argentina e Chile, a América Latina, com exceção de Cuba, caminhou para experiências democráticas. A exemplo do Brasil muitos desses países tiveram suas constituições reescritas para abrigar um “estado de direito democrático” e, claro, buscando preservá-lo. É o caso de Honduras.
Há, na constituição hondurenha, democraticamente votada pelo congresso daquele país, cláusula pétrea (ou seja, um princípio fundamental, intocável) segundo a qual o presidente da república não pode ser reeleito.
Cidadãos de um país da América Central, os hondurenhos conhecem muito bem a vocação autoritária e o apego ao poder dos políticos latino-americanos. Sabem que reeleição em qualquer país de democracia novata é o primeiro passo para a perpetuação de um déspota no poder.
Não por acaso, aliás, Simon Bolívar, em 1830, ante a ruína de seu plano de integração da América hispânica, profetizou que ela ficaria entregue a "pequenos tiranos quase imperceptíveis, de todas as cores e de todas as raças".
Mas é a partir do início do século XIX, que pipocam ditaduras para todos os gostos nesta parte do mundo. De Rosas a Perón, na Argentina; do caudilho Vargas aos generais-presidentes, no Brasil; Guzmán Blanco e Vicente Gómez, na Venezuela; Porfirio Díaz, no México; o peruano Leguía; Estrada Cabrera, na Guatemala; Pinochet, no Chile; Francia, Solano Lopez e Stroessner, no Paraguai; Maximiliano Martínez, em El Salvador; Fulgencio Batista, em Cuba; Rafael Trujillo, na Republica Dominicana; Anastasio Somoza, na Nicarágua... Por aí viemos.
Conseqüências óbvias de realidades arcaicas como latifúndio, imperialismo, pobreza, analfabetismo, militarismo, etc.
Sem embargo, sobre o raiar de uma nova ordem internacional após a queda do muro de Berlim, eis que um certo alpinismo autocrata, de inspiração esquerdista, começa a aflorar na América Latina, na senda de governos populares compromissados com as populações mais pobres.
Tal como nas décadas de 60 a 80, quando essa escalada se ergueu pela direita, na década atual ela se insinua pela esquerda, sob viés assistencialista, como opção ao neoliberalismo e aos inegáveis índices altos de desigualdade e exclusão social.
O certo é que Venezuela, Equador e Bolívia são exemplos de governos que se mostram desconfortáveis com as regras democráticas abrigadas nas constituições de seus países. Se antes a “guerra fria” norteava os inconformismos, hoje a força abonadora reside numa certa ambição de polaridade geopolítica na banda oposta à liderança americana no mundo.
Ora, Zelaya, rico fazendeiro eleito pela direita, mas que aderiu ao esquerdismo (ou ao populismo) chavista, como queiram, foi deposto de acordo com a Constituição de Honduras, apenas por insurgir-se contra ela. Começou por consultar o congresso sobre a realização de um plebiscito visando alterar a constituição da república hondurenha. Queria a retirada da “cláusula pétrea”, que proíbe a reeleição, mesmo protegida pelo Art. 239 da mesma Constituição que diz: “Qualquer presidente que tentar quebrar essa disposição, deve ser imediatamente afastado do cargo e considerado inelegível por 10 anos".
Como seria de se esperar, estando a campanha eleitoral para as eleições presidenciais no final deste novembro já nas ruas, o plebiscito foi negado – primeiro pelo legislativo, depois pelo judiciário.
Mesmo assim Zelaya foi ao Aeroporto retirar de um avião venezuelano as urnas e as cédulas enviadas por Chávez para o plebiscito em Honduras... Fez mais: exigiu que o comandante das forças armadas hondurenhas o apoiasse na retirada do material e na organização do plebiscito.
Óbvio que, ante a total inconstitucionalidade do ato, o militar se negou a fazê-lo e foi prontamente demitido por Zelaya.
Julgando o desrespeito à proibição do plebiscito e a clara disposição de ignorar as leis do país como práticas absolutamente inconstitucionais, a Suprema Corte de Honduras destituiu Zelaya da presidência e o expatriou. O sucessor legal, Deputado Micheletti, empossado, manteve as eleições presidenciais para o final de novembro.
Eis a questão. Por deter Zelaya um mandato popular, concordar com sua deposição seria, para muitos, abrir um precedente golpista bem ao gosto dos tradicionais tiranos latino-americanos. Pelo menos assim pensam os esquerdistas.
Por outro lado, ser a favor de Zelaya resultaria em abraçar, ingenuamente, o tal bolivarianismo autocrático de Chávez, que o apóia.
Na verdade, nenhuma das duas vertentes empolga consciências neste momento histórico internacional. Embargos econômicos e pressões políticas de países líderes inviabilizariam, hoje, qualquer governo despótico ou ilegitimamente instalado no continente.
Por tudo isto, o imbróglio em que se meteu a diplomacia brasileira no incidente doméstico de Tegucigalpa é, pois, de paupérrimo extrato. Vale tanto quanto o anacronismo dos valores em jogo.
Eu estou do lado de fora.
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(Publicada em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/, em 01.10.09, e no jornal LEOPOLDINENSE)
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
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