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Setembro, 1983
À margem da Rio/Bahia, na segunda curva a meio caminho entre a Capelinha de Santo Antônio e o acesso à Boa Sorte, vai desaparecendo uma árvore secular. Um Pau d´Alho. O velho Pau d´Alho da Onça, tão avançado em anos que ninguém entre os vivos afirma tê-lo visto nascer ou crescer.
Também eu já o conheci idoso, imponente, ufano, mas franzido nas cascas, a braços com aquela perda de substância no tronco, moléstia que durante uns prováveis cem anos conspirou contra sua vida. Tão grande era o buraco brocado que servia de abrigo e maloca aos retirantes da poeirenta BR-4.
Ali armaram pouso providencial, através dos anos, andarilhos, mendigos, viandantes e erradios das mais variadas origens.
- Teria vindo de onde a moreninha infeliz que, por lá, também vacilou breve paradeiro nos idos dos primeiros anos 50? Nós, crianças, mal dávamos trato então à zoada de pé de ouvido, no meio da peãozada:
-Tá pondo incômodo nos home...
Quantas histórias, meu Pau d’Alho!
Você, estacado bem a meio dos meus sete quilômetros de ir ao Ginásio, foi o resfolgo do meu cavalinho Guarany, a sombra fresquinha, o perfume da floração sentido de longe, como se você quisesse vir correndo encontrar com a gente. Um troço que ardia nos olhos, aquele acerbo silvestre de floração, sabendo ao alho do seu sobrenome.
Impossível esquecer! O Pau d´Alho foi também pátio do meu recreio. Quando mamãe, a professora rural, soltava a criançada no fim da classe, era aquela correria. Tua sombra afável nos recebia com zelo de fada protetora e, do alto de sua fronde, nos descia uma cantiga de ninar com os solos das cigarras, zumbido das abelhas e trinados de pássaros miudinhos.
No chão, a terra batida, lisinha, na conta certa para se deitar e rolar. Não sabíamos, companheiro, que nossos sentidos haveriam de ficar, para sempre, contaminados pelo gesto mágico dos seus galhos. E por falar neles, um dia carreguei de presente um galho seu, bem fininho, para cabo de meu arco... As crianças ainda brincavam de rodar arco.
São muitas lembranças, centenário amigo. Não tenho como agradecê-las. Mas o pior é não ter como socorrê-lo, agora. Há dias, chegando por aqui, deparei-me com você estirado morro abaixo. Parei o carro, dei ré, desci e apalpei com a sola dos sapatos suas raízes chochas, humilhadas pelas orelhas dos fungos.
Subiu-me à garganta uma bucha de dó e de saudade. Meio estúpido, num gesto automático, cheguei a erguer os olhos à procura de seus ramos.
Claro que não podiam estar lá em cima.
Cabeça baixa, dei então de contemplar ao redor naquelas coisas todas que há muito se foram e, por um instante, experimentei a sensação de revê-las. Sonho de homem acordado.
O velho Pau d´Alho está irremediavelmente extinto. Mas todo mundo, nas redondezas da Onça, sabe da sua luta pela vida, do silêncio com que foi útil e foi belo, e da dignidade com que se entrega, só agora, neste ano da graça de mil novecentos e oitenta e três.
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(Publicada na FOLHA DE LEOPOLDINA, 2ª quinzena, setembro, 1983)
quinta-feira, 28 de abril de 2011
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