Julho, 2010
Sabe-se que aparência frívola, leviana, pode abrigar uma alma que é apenas ingênua. Isto me lembra o Cordeiro, talvez o mais típico dos cariocas que conheci. Aprontava demais, mas sempre de bem com a vida. Por causa dele aqui está, hoje, mais uma história ambientada no Rio de Janeiro.
Cordeiro era habitué do
vôlei de duplas na praia de Ipanema. Só nos encontrávamos em fins de semana esporádicos,
quando fazia sol. Possível beneficiário de aposentadoria prematura, constava
ser solteirão e morar num apartamento pequeno ali pelas proximidades de Ipanema
com o Posto 6. Passava dos cinquenta anos, era baixo, bem feinho, cabelos e
bigode pintados. Tinha o rosto inexpressivo de um retrato falado. Apesar disto,
afoito com mulheres. Dá pra entender?
Não lhe negaria o rótulo de “boa
pessoa”, apesar dos hábitos que faziam dele uma companhia um tanto cansativa:
como jogador de vôlei, reclamava muito; como frequentador da praia azarava
mulher o tempo todo. Bota inconveniência nisto. Vez ou outra rendia uma
história.
Certa manhã, os saques do
Cordeiro começaram a ficar na rede. Percebemos que a atenção dele estava ligada
numa garota linda, com idade para ser sua filha. Contemplava a moça e
sussurrava chatíssimo: “Estou no céu, me belisca, ela sorriu pra mim...”
Mestre na arte de dispensar
apresentações, logo, logo, estava lá o bicão, agachado na areia ao lado da
menina. Soubemos que a conversa rendeu. Cordeiro foi convidado para ouvir
música no apartamento dela. Aquilo – confessou ele, realista – “me pareceu
cereja demais no meu coquetel, mas um homem na minha idade acredita em tudo...”
Dizendo-se vidrada em Michael
Jackson, a mocinha sugeriu que ele a presenteasse com o álbum “Thriller”, que
explodia nas paradas mundiais da época. Se conseguisse comprar o disco,
“poderia até visitá-la amanhã mesmo, domingo, às 15 horas...”
– Meu prédio – explicou ela – é
o de tijolinhos cor de cerâmica na portaria, bem no início da Rua Madre Euzébia,
no Leblon.
Corte rápido para lá. No
domingo, pouco antes da hora combinada, na porta do prédio, um lobo na pele do
Cordeiro ponderava sua caça. Que, pontualíssima, logo apareceu ao predador
pedalando sua bike, em traje de malhação. Delicada e afável aplicou dois
beijinhos nas faces do garboso meia-idade e, com um sorriso bom, abriu o
envelope que abrigava o precioso LP.
-Humm! Lindo! Este mesmo, valeu!
Obrigada. Vamos subir.
Com um braço dado ao Cordeiro e
o outro empurrando a bicicleta, conduziu o “convidado” pela galeria de acesso ao
elevador e ordenou:
-Suba na frente. O apartamento é
o 801, a porta está apenas encostada. Entre e espere um pouco. Rapidinho eu
guardo a bike na garagem e subo.
Já no elevador um pequeno transtorno:
não havia tecla para marcar oitavo andar... O Cordeiro tremeu nas pernas, mas
exorcizou pensamentos negativos.
-Bobagem, o que mais tem no
mundo é prédio em que o elevador não vai ao último andar. Certamente que, do
sétimo ao oitavo, a subida é pela escada.
Apertou o “sete” e chegou lá.
Cadê escada pro oitavo andar? Não tinha!
– Será que a menina se enganou
com o número do próprio apartamento? – quis acreditar. Ela disse 801... Posso
não ter ouvido bem. Vai ver é o 701, o 601, o 501...
Desceu a pé conferindo os
apartamentos “01” de todos os andares. Nenhuma porta “apenas encostada”.
Desiludido, chegou ao hall de entrada e
viu que a galeria dava passagem para a outra rua...
– Exatamente por onde a
danadinha se escafedeu – concluiu desolado.
Foi o dia da caça. O caçador que
se virasse com os momentos de esperança malandra que certamente viveu. De
preferência conformado, porque a esperança é assim mesmo. Até as mais honestas
e legítimas às vezes trapaceiam.
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(Publicada em 08.07.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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