Junho, 2004
Esta
é a história do tempo em que o rapagão, Mario, decidiu afrontar sua timidez
oceânica. Mas não se deu bem. Foi num baile de formatura – antigamente havia –
em que o guapo moçoilo, meu companheiro nas festas de então, foi acometido por
um surto de deslumbramento. A moça era extraordinariamente bela.
Mas antes situemos melhor a história no tempo. Mário contava uns 19 anos. Eu, também
por aí. Somando a isto quatro décadas, o “jovem” em questão, se estiver vivo,
anda hoje pelos sessenta.
Éramos estudantes, mas ele servia na marinha. Alto, forte, cabelo de milico, raspado
nas laterais e partido no teto − tentativa engomada de lembrar Clark Gable.
Ela, 17 perfumadas primaveras presumíveis, morena clara, angelical, charme
transbordante, vestido de baile, se bem me lembro, da cor rosa, cabelos sedosos
divinamente armados num coque, versão aperfeiçoada – eu disse aperfeiçoada – da
atriz Grace Kelly.
Nunca se haviam visto. Mário desmoronou-se em comoção tão logo a divisou entre
desconhecidos numa mesa junto à pista. Semelhança com Grace Kelly, nada. Para
ele, a própria ali ressurgida com o fascínio avassalador que lhe despertara a
atriz, no filme Mogambo!
Desvairado, delirante, Mário virou Príncipe de Mônaco – quem diria! – em pleno
Grajaú. Ia me esquecendo: o baile foi no Grajaú Tênis Clube. Chegaria a ela e,
ciumento, compraria de Hollywood todos os seu filmes, para jogar no lixo, muito
apesar da timidez abissal que jamais o permitiu, antes, aproximar-se de
qualquer menina bonita.
Hoje é diferente − decidiu. Não se trata de uma bela moça. Trata-se de uma
divindade. A “deusa da minha rua”, da minha vida, do meu bairro, do meu mundo!
Não tem covardia que me segure: levo “fora”, fico ridículo, planto bananeira,
vendo chuchu pelado, mas vou tirá-la pra dançar... E de cara limpa, Petrarca!
Agora!
Bastou a orquestra dar os dois primeiros acordes da música seguinte, Mário
centralizou a gravata no gogó e partiu, a todo risco, imaginando versos que só
surgiriam muitos anos depois:
–
Quer me dar o prazer, senhorita?
De dançar comigo
esta canção, tão bonita!
Faz de conta que
eu sou Fred Astaire
e você Ginger
Rodgers...
– A maravilha disse sim. Num átimo, estavam os dois no centro do salão. Estavam
sós, porque Mário foi muito rápido na iniciativa. Talvez coubesse dizer alguma
coisa à moça, mas o cérebro grimpado de Mário não o acudia com um mísero
monossílabo.
Nervoso, toma nos braços a dama e já prepara o primeiro passo. Mas... diabos!,
a introdução à música é longa, insossa e sem ritmo! Não havia como dançar
aquilo. Miseravelmente tímido, sobraçando, estático, sua divindade pela
cintura, passou Mário a carpir os segundos mais acabrunhantes de sua
existência, à espera de compassos musicais dançáveis. Segundos eternos!
Finalmente, um músico fica de pé empunhando uma sanfoninha quadrada.
Mário vai ao desespero: – Meu Deus, aquilo é bandoneon, vão tocar tango!... De
fato, explode um tango argentino. Mário pondera o entorno: Está só e se sente alvo
de todos os olhares! Avexado, cérebro dando branco, chacotas por começar e o
tango a perigar misérias contra os pés da moça...
Pensou rápido:
– Eu, o tímido embarcadiço Mário Matias d`Scragnole, não sei
dançar tango. Tudo que tenho a fazer é agradecer à moça e me evaporar.
Balbuciou no ouvido dela:
– Tango para mim não dá, entende. Outro dia, quem sabe...
– Como queira – disse ela numa dobrinha graciosa de joelho. E tudo terminou
ali.
Sofri por ele. Sinceramente, sofri. A beleza da moça era indescritível.
Nas
quebradas da vida, há algum tempo, topei com o Mário. A custo lembrou-se da
história. Não era de arquivar lembranças poéticas. Achei incrível que, para
ele, Grace Kelly do Grajaú não fosse um tango atravessado na memória. Porque, para
mim, sempre foi.
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(Publicado no LEOPOLDINENSE de 30 de junho de 2004)
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