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(Publicada no jornalzinho REENCONTRO, dos alunos do Colégio Leopoldinense)
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Não vou contar aqui nenhuma daquelas repassadas anedotas atribuídas ao nosso querido professor Joaquim Guedes Machado, do Colégio Leopoldinense, daquelas em que o mestre aparece sempre qual iracundo preceptor a assombrar seus assustados discípulos.
O professor Machado, com sua personalidade ímpar, transformou-se num mito, num ícone dessa universidade que foi o Colégio Leopoldinense. E, como personagem mitológico, um alvo constante das brincadeiras e das simplificações do imaginário saudoso-piadista de seus ex-alunos, nostálgicos carinhosos da falsa iracúndia do mestre. Fez-se um folclore em torno das tiradas do Machado.
Machado foi professor sensível e justo. Superdotado da ciência matemática e superdotado das melhores qualidades humanas, tinha um coração tão largo e azul quanto esse mar atlântico que pela maior parte da vida o separou de sua pátria portuguesa.
Seus xingamentos não conduziam insultos. Simples bordões, marcas registradas do apurado humor guedemachadiano. Humor a seu modo, original e sutil, que as crianças nem sempre entendiam.
Se você, meu bom colega de Colégio Leopoldinense, já foi obrigado a jurar com as mãos sobre uma Bíblia imaginária, que iria dedicar-se um pouco mais à matemática no ano seguinte, não deve ter percebido o quanto rolava de finória comédia naquelas práticas.
O problema é que mesmo o critino que percebesse a sutileza do mestre, certamente não teria coragem de rir. Só passei a desconfiar de chiste muito depois. Nada me tira da cabeça que o Machado, pelo menos algumas vezes, se divertia consigo mesmo.
- Fala vurdade, não se divertia? Ele repetindo én, én vezes, aquela história do menino burrinho, burrinho, que a orelha foi crescendo, crescendo até chegar ao teto...
Lembro-me do dia em que ele confessou, humildemente, em classe, sua dificuldade para pronunciar a letra “n”, com acento brasileiro:“êni”. Ele, por mais que tentasse – dizia – só conseguia dizer én, én... E sorria.
Todo ex-aluno tem um boa história do Machado para contar. Eu também.
Minhas aulas com ele começaram na segunda série ginasial. Contava, então, onze anos. Habituado, o Machado, até os anos 50, a lecionar para rapazes bem mais crescidos, do internato do Colégio, parece que não gostou muito daquela criançada na faixa dos dez anos que a reforma do ensino jogou no secundário. Lembro-me perfeitamente que a juventude excessiva da nossa turma o incomodava.
- Já avisei pra ó Diretor. Quem não conseguir acompanhar bai repetir ó ano...
Eu, particularmente, exibia todas as ferramentas do fedelho imaturo, pois vinha da escola rural, de uma infância pouco comunicativa na roça, sem traquejo urbano, meio fora do meu elemento. Além do mais, desatento e avesso a números. Mesmo assim jamais me senti – digamos – amedrontado pelo Machado. Ao contrário, cumulava-me ele de atenções, muito provavelmente por haver percebido minhas desvantagens em relação aos colegas.
Para mim uma evidência clara de que no verso daquele estilo pedagógico personalíssimo, militava um coração extremamente atento, doce e solidário.
Bem lá na frente, no primeiro ano do colegial, precisei lições de reforço. Até as colunas dóricas do Colégio sabiam que o Prof. Machado abominava dar aulas particulares. Naquele ano, no entanto, aceitara lecionar em sua casa para uns cinco ou seis recalcitrantes. Claro, uma forma de lidar com as dificuldades dos muito jovens.
Deu-se então que em certa manhã de chuva torrencial fui pego na estrada, a cavalo, vindo de minha casa na roça à cidade, exatamente para aula de recuperação em matemática. Cheguei à casa do Prof. Machado em estado lastimável. Roupas e sapatos encharcados, tossindo, cabelos escorrendo. E ele:
-Meu Deus, é a pneumonia! Judith, vamos secar a camisa dele! Vou buscar-lhe um binho.
Da. Judith socorreu-me com uma toalha de banho enquanto, lá dentro, a empregada da família secava a ferro minha camisa. Machado serviu-me uma taça de vinho tinto, delicioso, que a custo tomei, com o queixo tremendo, telegrafando de frio. Confuso com a linda taça, não atinava se devia beber de um só gole ou, com educação, aos pouquinhos...
-“Beba tudo de uma vez” - acudiu-me ele com inefável ternura.
Guardo até hoje, e guardarei para sempre em meu coração, a suavidade daquele vinho.
É assim que, decompondo e diferenciando gratas recordações do mestre, chego a um teste de três questões que Machado nos aplicou, se não me engano, na quarta série ginasial.
Prova surpreendentemente fácil. Como de hábito, os problemas amanheceram caprichosamente dispostos à lousa, com a ponta fina do giz.
Sala na penumbra, janelas hermeticamente cerradas (para que ninguém visse, antecipadamente, as questões), curiosos enxotados da varanda fronteiriça. À porta o Machado, meio mestre de cerimônias meio lanterninha de cinema, apontava com o apagador a carteira que cada um deveria ocupar. Nada de mau aluno atrás de bom aluno, para “colar”...
De um banco dianteiro, ponderava eu as questões na pedra enquanto as mãos trêmulas iam destacando as folhas da prova, na dobra interna do caderno. Sussurrei comigo:
- Meu Deus, que barbada! Vou tirar dez! Machado converteu-se ao cristianismo! Fácil demais.
Dada a largada, caprichei nas contas com desvelos de relojoeiro. Meu primeiro dez em matemática não podia escapar. O tempo fluía em suave encadenamento algébrico. Suavemente ia também o Machado, de mãos unidas às costas, progredindo silencioso entre as carteiras. O rabo de olho nos raciocínios cabisbaixos, concentrados. Ninguém arriscava virar a cabeça.
Súbito, dou fé que ele se aproxima, pisando leve, parecendo deter-se bem atrás de mim. Cadê coragem para virar o pescoço e conferir. Não havia dúvida, ele respirava sobre minha cabeça. Um fio de cabelo despegado do Gumex palpitou um titilo bem no olho do meu redemoinho. Ih, não devo coçar agora. Vai parecer que o enxoto. Está conferindo meus cálculos. Resvalei um olho pelo chão e um bico de sapato preto, bem ali atrás, me energizou um fluído na medula. Ele percebeu o arrepio, retomou os passos discretamente. Parece que seguiu sem bronca.
Pensei comigo: ele conferiu, estou acertando. Vai ser dez!
Na aula seguinte, as notas. Tirei sete. Das três, duas questões corretas.
Na terceira questão, a resposta era dois. Encontrei raiz de quatro que, para mim, seria a mesma coisa. Para o Machado, não. Teria que apurar. Errado!
Bom, nota sete para um avoado do meu calibre era troço pra chuchu. Mesmo assim, coube-me receber aquela prova da mão do Machado ao som de exasperados superlativos. Merecidos, claro. Não tenho dúvida de que ele gostaria de ter-me dado dez. Mas, critério é critério.
De fato, minha exponencial inequação à disciplina dos números sempre foi um tormento. No segundo ano do Clássico, fiquei para exame de segunda época em matemática. Ou seja, recuperação. Fui à prova oral precisando de nota altíssima para passar. Nove e meio! Algo impensável de se obter com o Machado. Verdadeiro desastre. Minha amizade com os colegas de turma era grande e iria perdê-los, para o ano seguinte. O Machado jamais me daria nove e meio numa prova oral.
Arrasado, desmotivado, decidi brincar o carnaval em vez de estudar para a prova. Durante o dia, ia para a sinuca do bar do Sô Orlando, na Cotegipe. Estudar pra quê? Estava reprovado!
Veio a prova oral e lá fui eu para o sacrifício final. Na janela da sala, a presença de alguns colegas curiosos era mais opressão que apoio. Seriam, todos, meus ex-colegas de turma em poucos minutos...
Minha vez de ir ao quadro. Machado me oferece uma sacolinha preta:
- O senhor tire o ponto! Quanto o senhor precisa para passar?
Nove e meio, Professor.
-Jesus, nove e meio! (De mãos unidas, o mestre acelera dois passos na direção do crucifixo na parede de frente. Retorna ao rubro)
-Só acredito vendo. O senhor faça o cálculo aí à lousa.
Escrevi minhas notas. Demonstrei: precisava, realmente, de nove e meio para passar.
-O senhor sabe que já está reprovado, não é? Eu não tenho culpa, não estudou, vai ser reprovado... Eu não tenho culpa!
Vamos lá, primeira questão: Binômio de Newton. (Desenvolvi o problema. Machado o conferiu com cuidado)
-É, o senhor acertou.
Segunda questão: Progressão geométrica. (Estava com sorte, acertei de novo.)
Terceira questão: Nem me lembro o que foi. Mas acertei também... e era a última! Vou passar, pensei! É incrível! Vou passar de ano!
Só que, ao concluir o problema, vi que o professor estava estático, de costas para mim. Acompanhara o correto desenvolvimento da questão mas, temendo que algum cochilo final meu pusesse tudo a perder, preferiu não ver a conclusão. Se erro ele estaria obrigado a me anunciar a “sentença bruta” da reprovação. Gritou:
-O senhor terminou?
Sim professor, terminei. (E ele, ainda de costas)
-A resposta está certa?
Está certa, professor.
-Então apaga. Eu não quero ver! Apaga!
Meio decepcionado (eu queria que ele visse que acertei) apaguei tudo.
Calmamente, Machado aparelhou-se comigo, ergueu na palma da mão esquerda o livro de notas, bem à altura do meu nariz, e escreveu nele o nove e meio da minha redenção. Escreveu arrastado, com força, quase furando o papel com a caneta.
Foi mais que uma prova. Foi uma lição inesquecível. Daquelas para aluno criar vergonha e estudar mais no ano seguinte.
Assim era o meu inesquecível mestre, Professor Joaquim Guedes Machado. Meu e de muita, mas muita gente mais.
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quinta-feira, 11 de março de 2010
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