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quinta-feira, 25 de março de 2010

O Cavaleiro #

***
Abril, 2010

Sinceramente, casos existem que seria melhor não contá-los. Mesmo sabendo disto, vivo advogando veracidade de histórias improváveis. O sujeito lê e deve pensar: “-Esse cara tá dando parte que eu sou bobo!” Acontece que a porção feminina do “fato sucedido” usa a tática da repetição e fica me azucrinando a paciência: Conta! Conta! Conta! Aí, já viram, né, mulher sempre vence pelo cansaço. Melhor contar logo.

Eu devia ter uns 9 anos de idade. Crescia na fazenda junto a meus pais e a uma montoeira de irmãos mais novos. Nossa casa era grande, sinistramente antiga, erigida sobre esteios e baldrames de aroeira, assoalho de taboas largas, desniveladas, muitos quartos, corredores escuros, janelas e pé-direito altos. Pertencera a meu avô paterno.

Ocupando toda a frente da residência, tínhamos o alpendre onde meu pai costumava ocupar sua cadeira de braços, para ler ou observar o movimento do curral leiteiro em frente. Também nessa grande varanda, com meus irmãos e com meninos da redondeza, jogávamos futebol de botões.

Certo dia, ali por volta das seis da tarde, já iniciando escurecer, assomou à porteira da entrada um cavaleiro desconhecido. Era um homem alto, não muito magro, pele branca amorenada pelo sol. Montava um cavalo castanho de espigada postura, cauda e crinas aloiradas, pelos limpos e escovados. Sem dúvida um belo animal, muito bem tratado.

O cavaleiro trajava calça caqui e casaco bege impecáveis, grandes bolsos nas laterais e na frente do casaco com abas pontudas a encimá-los, parecendo dólmã militar, botões graúdos e ombreiras abotoáveis. Usava chapéu panamá claro com abas um pouco mais largas que as comuns. As botas eram cor grená, parecendo couro cru, equipadas com esporas de metal amarelo e estreladas rosetas. Chamava a atenção, ainda, o arreio almofadado em pelica fina, de costuras salientes, com argolas e fivelas de bronze valorizando os láticos e a rédea. Também de bronze eram os dois reluzentes estribos.

Tudo isto somado à compostura e ao asseio do conjunto – cavaleiro e montaria – resultava não muito conciliável com a longa viagem por estradas poeirentas que ali os trouxera, como adiante ouviríamos.

Meu pai deu ordem ao tratador para abrir a porteira ao adventício. Este agradeceu e manobrou sua montaria a passos sóbrios na curta distância entre a cancela e o alpendre onde estávamos. Ainda montado dirigiu-se a meu pai com palavras de boa escolha:

-Amável senhor, o que me traz aqui é a fadiga de um dia inteiro ao sol por esta estrada que demanda o Paraibuna. A cidade mais próxima está a duas léguas à frente. Imploro-lhe a bondade de conceder-me pouso por esta noite e, inseguro se o abespinho além da conta, rogaria também algum trato a meu cavalo que, sob a dura canícula, acaba de romper sete léguas de chão esticado.

De sua cadeira preferida na varanda, com os moleques enroscados nas pernas, papai aquiesceu com gentileza:
-Pois não, vamos apear, amigo. Seja bem-vindo.
E avisou ao tratador:
-Por favor, Chico, tire o arreio do animal, dê um banho nele e bote-o pra comer no cocho com as vacas.
-Suba, meu senhor.

Na varanda e já acomodado na cadeira de vime que lhe foi oferecida, o homem falou de si mais ou menos assim:

-Sr. João (dirigia-se a meu pai), meu genitor também se chamava João. Batizou-me Chrisóstomo, um seu criado. Posso dizer que, submisso ao fio que o destino tece para cada um de nós, minha vida tem sido andar pelo mundo. Um homem não precisa muito para viver, Sr. João. A mim me bastam as colheitas que me deixou meu pai, junto ao reino dos homens e ao Reino de Deus. Não foi herança enorme, a primeira, mas com a segunda posso estar em todos os lugares que me aprazem. Aqui e no exterior. Se ando por nossa terra, prefiro fazê-lo a cavalo. É agradável progredir lentamente um pouco acima do chão, ir conhecendo lugares e pessoas. Devo alcançar a cidade de Januária, no São Francisco, em cinco semanas. Mas se acaso delongas me consumirem dez semanas, pelos muitos pousos que merecer, melhor gratificado estarei. Encantam-me mais os caminhos que propriamente os destinos.

-Acabo de conhecer os Estados Unidos da América. O senhor não imagina, Sr. João, o progresso industrial daquele país. Visitei Detroit. A cidade possui indústrias que se estendem por quarteirões espetados por dezenas de chaminés. São imensas fábricas de automóveis, caminhões, tratores – que aquela grande nação fabrica e vende para o mundo inteiro. Tudo o que vemos por aqui, de veículos de passeio ou de carga, todas as marcas, tudo, tudo, vem da América. É um pais riquíssimo, excedente à nossa imaginação.

A certa altura papai, certamente, já detectara na companhia sinistra “um possível louco” e, nós, um a um, aos bocejos, entráramos na direção dos quartos. Por delicadeza e, sem qualquer dúvida, por prudência, meu pai ainda levou um pouco adiante seu forçado interesse em tão áridos relatos.

Para felicidade de todos nós, até um doido sabe que na roça se dorme cedo. Antes das oito minha mãe já nos havia aplicado os cobertores e meu pai indicado ao hóspede as serventias da casa e o quarto a ele destinado. No dia seguinte, quando as crianças despertaram o forasteiro já havia partido.

Pela vida a fora - e, para ser absolutamente verdadeiro, até à idade adulta - jamais pude ver um prédio industrial, ou mesmo uma foto daqueles telhados angulados com chaminés vertendo fumaça negra, sem que me viesse à mente as “impressões de viagem” do misterioso forasteiro. É bem verdade que a coisa rendeu um pouco mais.

Já passava dos 17 anos quando, por acaso, toquei no assunto do cavaleiro com papai. Para susto meu, ele não se lembrava do episódio. Fui depressa à minha mãe dando-lhe todos os detalhes do ocorrido. Incrível! Ela também não se lembrava. Só faltava o Chico dizer a mesma coisa! E disse:

-Olha, Zé, por mais que eu puxo pela idéia, não me acode de ter dado banho nesse cavalo. Menos ainda de ter aberto a porteira pra esse tal cavaleiro com roupa de soldado.

Fiquei intrigado. Não sou doido! Sonho não foi. O cavaleiro era real. O cavalo era real. Vi o Chico tirar a sela do corcel e banhá-lo na bica... Será possível!

O tempo, esse nosso amigo brincalhão, levou-me um dia a visitar a irmã mais velha de meu pai, Tia Lígia. Resolvi contar-lhe minha fantástica história enquanto, à mesa da sala de jantar, saboreava com café seus inesquecíveis biscoitinhos de polvilho azedo. Percebi que ela não abria os olhos enquanto me ouvia. Quando terminei, Tia Lígia colocou suas mãos sobre as minhas e, inclinada sobre meus ombros, disse em tom cuidadoso:

-Seu avô, meu filho, sempre dizia que naquela “Fazenda Expiação”, de tempos em tempos, aparecia esse cavaleiro. Nem todos o viam...

Eu, hem!
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(Publ. em 01.04.2010, em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

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