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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Piacatuba

***

Se a história não for original estará pelo menos returbinada na geografia insólita onde reaparece. Costumam pintar impressões de déjà vu nas surpresas que a vinda nos reserva.

A sexta-feira desmaiava numa tarde calma de sol poente avermelhado anunciando frio, sumindo aos poucos lá por detrás da Serra do Itamaraty, quando, transitando por uma rua tranquila da cidade de Leopoldina, Minas, a mulher do Alziro foi despertada para o almoço do dia seguinte, ao ver um açougue aberto.

– Pare o carro aí, amor. Temos que comprar galinha. Sua cunhada, goiana, chega amanhã cedo e já telefonou dizendo que vai preparar uma Galinhada com Pequi, para nós.

Alziro, piacatubense de carteirinha e papel passado, que já morou em Goiás e não pode ouvir falar em Galinhada com Pequi, parou numa freada de quase arrastar pneus.

– Galinhada com pequi é manjar dos deuses do Olimpo. Maravilha! Será que ela vai trazer o rebate de Licor de Pequi em garrafa arrolhada com sabugo de milho?

Era a primeira vez que Alziro entrava naquele açougue.
– Dois frangos, por favor!
– Frango, não querido: “Galinha!” – gritou a mulher, da janela do carro.

Vamos com calma, mulher – diz o marido, voltando-se, em voz baixa. Não percebe que eu mexo com política e, se peço galinha, o pândego desse açougueiro pode me enrolar amanhã num duplo sentido espalhando pela cidade que “O Dr. Alziro só come galinha”? Político precisa desenvolver raciocínios frívolos para não cair nas armadilhas do populacho – sentenciou paranoico. Vamos combinar que, para efeito de galinhada, frango e galinha passam a ser a mesma coisa, tá.

Pedido confirmado, produtos pesados e na sacola, a pergunta ao açougueiro:
– Quanto lhe pago pelos dois frangos, senhor?
– Nada − foi a resposta do açougueiro.
– Como nada? O senhor é um comerciante de carnes, eu estou comprando um item da sua oferta. Isto tem um preço que devo pagar. Por favor, quanto é?
– Nada −  insistiu o açougueiro.

Não entendi, amigo, o senhor está me fazendo doação de dois frangos, e nós mal nos conhecemos! Aliás, resido em outro bairro e nem me lembro se algum dia fiz compras em seu açougue. Seu gesto é simpático, sem dúvida, mas que me deixa confuso.
– Meu gesto nada tem de inexplicável, Dr. Alziro. Estou apenas sendo gentil com um “irmão de vida anterior”, que pela primeira vez me visita nesta encarnação.
– Hã, como?

– Sim, Dr. Alziro. O senhor não me é estranho, pois é advogado muito conhecido na cidade. Pratico “regressões” e, numa delas, descobri que o senhor foi meu irmão, no Arraial da Piedade, atual Piacatuba, numa geração anterior à presente. Nós brincávamos juntos, na Praça da Cruz Queimada e também naquela rua de calçamento emborcado para o meio. Pode crer nisto. Fomos irmãos de sangue em nossas vidas anteriores.

Confuso, Alziro não atinava com o que dizer. Apertou com calculado afeto a mão de seu 12º irmão (na encarnação atual, já tinha 11) e saiu para passar os frangos à patroa que, de dentro do carro, ali do lado de fora, a tudo assistia.

Encontrou-a recurvada sobre o painel, com as duas mãos à cintura como quem busca conter os espasmos do riso.
– Qual a graça?
– Ora, qual a graça! Pensa que não ouvi tudo? Você é um sujeito vaidoso, Alziro, quase um esnobe, que se diz apaixonado por Sidney na Austrália, vidrado no portento e no luxo de cidades europeias e americanas só alcançáveis nas mensagens com power point slides da Internet, e não avaliou bem o que o açougueiro acabou de lhe dizer?

– Nada tão engraçado − diz o marido com cara meio abobada. Ele disse, apenas, que foi meu irmão numa geração passada. Não vejo graça. Limito-me a respeitar o credo das pessoas. Se esta é a verdade e a convicção dele, não tenho autoridade filosófica para contestar. Que ele fique com elas.

– Mas não foi só isto que ele disse, seu distraído. Disse bem mais: disse que foi seu irmão “numa geração anterior”, em Piacatuba, percebe? Na geração presente, ninguém precisaria dizer. Todos nós sabemos que você nasceu em Piacatuba. A novidade que passa a constar é que você é um “reincidente”. Nasceu duas vezes, seguidas, em Piacatuba!

– Dá um tempo, não é Alziro.


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(Publicado no jornal de janeiro de 2009 LEOPOLDINENSE)

Um comentário:

  1. Piacatuba agora conta com a Pousada e Restaurante Bom Gosto.
    http://www.pousadabomgosto.com.br/

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