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Junho, 2002
Meu desenxabido texto do número anterior desta Gazeta, “A Chave da Riqueza”, foi o primeiro, há um bom tempo, a repercutir. Felizmente, manifestações positivas.
Leitores – possivelmente mais amigos que simples leitores – escreveram concordando em que somente ações de solidariedade social voltadas para valores éticos, morais e educacionais “poderão transformar nossos jovens socialmente excluídos em cidadãos participativos, autênticos sujeitos da história deste país”.
Muito mais gente do que se pensa, e até indivíduos de formação conservadora, aceitam hoje que a classe média brasileira, herdeira de uma sociedade escravista e patrimonialista, é responsável direta por investimentos que faltam na educação do nosso povo, por dar-lhe capacitação profissional, oportunidades de emprego, inserção social e saúde.
A alegria de ter tocado o coração de pessoas lúcidas nos anima voltar ao tema, não mais com o mingau ralo - a imagem é do poeta, Bandeira - dos nossos próprios argumentos, mas abrindo aspas ao tutano verbal do jornalista Gilberto Dimenstein, em artigo magistral publicado quando da segunda vitória do tenista Guga, em Roland Garros, fato contemporâneo ao lamentável episódio policial de 12.06.2000, no Rio de Janeiro. Disse Gilberto:
“Dois jovens, quase da mesma idade, poucos meses de diferença, comoveram, na semana passada, o Brasil. Um deles é branco, 23 anos, ganhou fama com uma raquete de tênis na mão. Outro, negro, 22 anos, ganhou fama com um revólver na mão. Na segunda-feira, Gustavo Kuerten, o Guga, cercado de fãs, se deixava fotografar em frente à Torre Eiffel, com o troféu que levou no torneio de Roland Garros, que o projetou para o primeiro lugar do ranking mundial do tênis e o deixou U$ 600 mil mais rico.
Naquele mesmo dia, Sandro do Nascimento, cercado de policiais, depois de um atabalhoado seqüestro, era jogado num camburão, onde morreu sufocado - ele queria R$ 1 mil. Ambos foram acompanhados pela TV, minuto a minuto, em tempo real, seja na quadra de tênis ou no ônibus. Cada qual ficou em seu palco quase quatro horas, filmados pela televisão.
Mas o suspense provocado pela raquete de Guga, nas quase 4 horas que precisou para derrotar o adversário, nos ensina sobre o que melhor podemos ser, graças à união da técnica, talento e perseverança. O suspense de Sandro, também quatro horas no ônibus em que tinha o mundo adversário e uma refém nos braços, nos ensina sobre o que de pior podemos ser, graças à união da falta de técnica, despreparo e omissão. Pelo seu jeito desengonçado, Guga não inspirava confiança quando ganhou pela primeira vez Roland Garros e rompeu a barreira do anonimato.
Sandro nunca inspirou confiança e só rompeu a barreira do anonimato quando seqüestrou, matou e foi assassinado. Seu único dia de notoriedade foi também seu último dia de vida, ele que escapara da notória chacina da Candelária.
Se, numa hipótese absurda, jogássemos Guga, naquele mesmo ano em que nasceu, no ambiente que levou Sandro para a rua, provavelmente estaria preso ou morto. Guga chegou onde chegou porque recebeu apoio, estímulo e orientação. Vimos, pela TV, que, encerrado o jogo, domingo passado, ele quis saber onde estava seu técnico e, estilo menino travesso, subiu as cadeiras para abraçá-lo.
Nas saudações, falou de seus familiares e, num simpático gesto provinciano, mandou pelas câmeras beijos para os parentes. Sabia que, por trás do troféu, estavam os familiares e o técnico. Todo grande vencedor tem uma grande dívida com alguém que o ajudou a prosperar.
Sandro chegou aonde chegou porque, ao contrário, lhe faltou apoio, estímulo e orientação.
Não teve ajuda da família, da escola ou de instituições públicas. Pior, elas apenas serviram para marginalizá-lo, mantendo-o deseducado e, por conseqüência, desempregado. Por trás do corpo asfixiado estava a família desestruturada, devastada pela violência e drogas. Todo grande derrotado também têm um grande crédito com alguém ou algo que o ajudou a afundar. Nessa quadra chamada Brasil, Guga e Sandro estavam divididos exatamente pelas linhas que incluem e excluem, que dão ou tiram chances, que fazem prosperar ou regredir. A quadra que faz derrotados e perdedores.
Se temos mais medo e vergonha do Brasil do que orgulho e confiança, é porque nossas linhas divisórias criam mais espaço para gerar Sandros do que Gugas. Desemprego, subemprego, baixos salários, educação pública ruim, políticas públicas indigentes para recuperar jovens, tratar drogados e assessorar famílias desestruturadas, são os fatores que empurraram o transtornado Sandro para dentro daquele ônibus, no Jardim Botânico. Os números mostram, com clareza, como o desemprego atinge, mais pesadamente, em particular aqueles com baixa escolaridade. E também mostram como a renda está caindo especialmente nas regiões metropolitanas.
Deterioração das regiões metropolitanas, baixa escolaridade, desemprego acentuado entre os jovens, são as linhas dessa quadra de exclusão. Nesse jogo da morte, não há polícia que, de fato, funcione. Nem prisão que abrigue tantos delinqüentes. Vamos seguir produzindo mais chances de Sandros do que Gugas. Somos, enfim, uma nação de perdedores.”
Nada a acrescentar. Tudo a reverenciar.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publicado na Gazeta de Leopoldina 01.06.2002)
Junho, 2002
Meu desenxabido texto do número anterior desta Gazeta, “A Chave da Riqueza”, foi o primeiro, há um bom tempo, a repercutir. Felizmente, manifestações positivas.
Leitores – possivelmente mais amigos que simples leitores – escreveram concordando em que somente ações de solidariedade social voltadas para valores éticos, morais e educacionais “poderão transformar nossos jovens socialmente excluídos em cidadãos participativos, autênticos sujeitos da história deste país”.
Muito mais gente do que se pensa, e até indivíduos de formação conservadora, aceitam hoje que a classe média brasileira, herdeira de uma sociedade escravista e patrimonialista, é responsável direta por investimentos que faltam na educação do nosso povo, por dar-lhe capacitação profissional, oportunidades de emprego, inserção social e saúde.
A alegria de ter tocado o coração de pessoas lúcidas nos anima voltar ao tema, não mais com o mingau ralo - a imagem é do poeta, Bandeira - dos nossos próprios argumentos, mas abrindo aspas ao tutano verbal do jornalista Gilberto Dimenstein, em artigo magistral publicado quando da segunda vitória do tenista Guga, em Roland Garros, fato contemporâneo ao lamentável episódio policial de 12.06.2000, no Rio de Janeiro. Disse Gilberto:
“Dois jovens, quase da mesma idade, poucos meses de diferença, comoveram, na semana passada, o Brasil. Um deles é branco, 23 anos, ganhou fama com uma raquete de tênis na mão. Outro, negro, 22 anos, ganhou fama com um revólver na mão. Na segunda-feira, Gustavo Kuerten, o Guga, cercado de fãs, se deixava fotografar em frente à Torre Eiffel, com o troféu que levou no torneio de Roland Garros, que o projetou para o primeiro lugar do ranking mundial do tênis e o deixou U$ 600 mil mais rico.
Naquele mesmo dia, Sandro do Nascimento, cercado de policiais, depois de um atabalhoado seqüestro, era jogado num camburão, onde morreu sufocado - ele queria R$ 1 mil. Ambos foram acompanhados pela TV, minuto a minuto, em tempo real, seja na quadra de tênis ou no ônibus. Cada qual ficou em seu palco quase quatro horas, filmados pela televisão.
Mas o suspense provocado pela raquete de Guga, nas quase 4 horas que precisou para derrotar o adversário, nos ensina sobre o que melhor podemos ser, graças à união da técnica, talento e perseverança. O suspense de Sandro, também quatro horas no ônibus em que tinha o mundo adversário e uma refém nos braços, nos ensina sobre o que de pior podemos ser, graças à união da falta de técnica, despreparo e omissão. Pelo seu jeito desengonçado, Guga não inspirava confiança quando ganhou pela primeira vez Roland Garros e rompeu a barreira do anonimato.
Sandro nunca inspirou confiança e só rompeu a barreira do anonimato quando seqüestrou, matou e foi assassinado. Seu único dia de notoriedade foi também seu último dia de vida, ele que escapara da notória chacina da Candelária.
Se, numa hipótese absurda, jogássemos Guga, naquele mesmo ano em que nasceu, no ambiente que levou Sandro para a rua, provavelmente estaria preso ou morto. Guga chegou onde chegou porque recebeu apoio, estímulo e orientação. Vimos, pela TV, que, encerrado o jogo, domingo passado, ele quis saber onde estava seu técnico e, estilo menino travesso, subiu as cadeiras para abraçá-lo.
Nas saudações, falou de seus familiares e, num simpático gesto provinciano, mandou pelas câmeras beijos para os parentes. Sabia que, por trás do troféu, estavam os familiares e o técnico. Todo grande vencedor tem uma grande dívida com alguém que o ajudou a prosperar.
Sandro chegou aonde chegou porque, ao contrário, lhe faltou apoio, estímulo e orientação.
Não teve ajuda da família, da escola ou de instituições públicas. Pior, elas apenas serviram para marginalizá-lo, mantendo-o deseducado e, por conseqüência, desempregado. Por trás do corpo asfixiado estava a família desestruturada, devastada pela violência e drogas. Todo grande derrotado também têm um grande crédito com alguém ou algo que o ajudou a afundar. Nessa quadra chamada Brasil, Guga e Sandro estavam divididos exatamente pelas linhas que incluem e excluem, que dão ou tiram chances, que fazem prosperar ou regredir. A quadra que faz derrotados e perdedores.
Se temos mais medo e vergonha do Brasil do que orgulho e confiança, é porque nossas linhas divisórias criam mais espaço para gerar Sandros do que Gugas. Desemprego, subemprego, baixos salários, educação pública ruim, políticas públicas indigentes para recuperar jovens, tratar drogados e assessorar famílias desestruturadas, são os fatores que empurraram o transtornado Sandro para dentro daquele ônibus, no Jardim Botânico. Os números mostram, com clareza, como o desemprego atinge, mais pesadamente, em particular aqueles com baixa escolaridade. E também mostram como a renda está caindo especialmente nas regiões metropolitanas.
Deterioração das regiões metropolitanas, baixa escolaridade, desemprego acentuado entre os jovens, são as linhas dessa quadra de exclusão. Nesse jogo da morte, não há polícia que, de fato, funcione. Nem prisão que abrigue tantos delinqüentes. Vamos seguir produzindo mais chances de Sandros do que Gugas. Somos, enfim, uma nação de perdedores.”
Nada a acrescentar. Tudo a reverenciar.
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(Publicado na Gazeta de Leopoldina 01.06.2002)
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