Novembro, 2011
Estive
fora no dois de novembro. Para mim, nunca foi uma data qualquer. Desde criança já
ia com meus irmãos e meus pais ao cemitério, no Finados, levar flores à “sepultura
do vovô”. Sempre chovia, o campo-santo (que, em Leopoldina está mais para
“morro-santo”) virava uma desordem lamacenta, um tremendo transtorno. Na volta,
invariavelmente, o cuidado de minha mãe:
–
Não entrem com os pés sujos... Deixem os sapatos aí fora!
Ainda
hoje, quando não me desincumbo da visitinha à derradeira morada dos meus convocados ao alto, começa a trilar aquele
desconforto renitente do dever não cumprido. A gente se condiciona à ideia de
que nossos entes queridos estão lá, ávidos de atenção, prontos a nos acudir. O
fato é que precisamos ilusões para viver. Se forem mais que ilusões, melhor: a
fé elimina incógnitas filosóficas. Mas se o imperativo da razão nos abjura a utopia,
surgem tormentos a reclamar escolhas, ainda que imprecisas e provisórias.
Lembro
muito aquela cena do filme, Zorba, o Grego, em que o personagem
de Antony Quinn, dá as costas à mulher amada ao constatar sua morte. Afasta-se
do cadáver e diz:
–
Não é mais ela!
Ali,
Zorba espanca a dor num rompante de racionalidade, mas nunca é tão fácil ao ser
humano dispensar o amparo providencial das ilusões. Faz-nos bem acreditar na
perenidade da alma por uma razão bem clara: nascemos para viver; não nascemos
para morrer. O Criador parece ter-nos infundido a convicção de que a morte é um
despropósito a ser resolvido. Um dado acidental da criação.
Mas
se vocês pensam que com este papo melancólico estou a fim de arruinar nossa
Conversa de hoje, estão enganados. Escolhi apenas o introito à história de um
sujeito que leva a morte na brincadeira. Ou, pelo menos, parece que leva. Vejam
só: aconteceu a primeiro de novembro do ano passado.
Sem
mais nem menos, apareceu aqui em casa – em rápida passagem pela cidade − um
desses parentes distantes que a gente conhece de ouvir falar e nunca imagina andar
por perto. Logo na apresentação descobrimos nele um cara legal, prosa agradável,
casado com uma prima, com quem também perdemos contato. A fama do sujeito, na
família, é de ser meio escorregadiço na maionese, parafusos intracranianos meio
frouxos. Preconceito, talvez, por sua veia artística, constando ter trabalhado
no circo quando jovem. Hoje, segundo diz, cria peixes ornamentais numa chácara
em São Paulo. Passa dos cinquenta e está viúvo há uns dez anos.
Minha
prima, a ex-esposa dele, foi artista plástica de renome, mulher muito bonita, elegante,
produzia óleos inspirados. Do casal sempre se soube viver muito bem, “um feito
para o outro” – se me socorre o rifão batido.
Pois
bem, era véspera de Finados e, por delicadeza, mas também pelo prazer que nos
daria, minha mulher e eu o convidamos a passar a noite em nossa casa,
descansar, e viajar no dia seguinte. Caía a tarde e o destino dele, Campinas,
em São Paulo, implicava dirigir setecentos quilômetros à noite. Muito perigoso
– argumentamos.
Ele
agradeceu o convite, mas não ficaria porque tinha um “compromisso inadiável”
para a manhã do dia seguinte, no cemitério de sua cidade: “dar uma mijadinha na
sepultura da Dinah”...
-Êpa!
O quê!
Tivemos
que rir, claro. Que brincadeira mais escrachada de maridão saudoso de sua amada!...
Ponderado, todavia, ele nos confiou sua história.
Certo
dia – disse – assim, meio irresponsavelmente, eu e Dinah combinamos que o
primeiro de nós a falecer receberia, todo ano, do que ficasse vivo, “uma
mijadinha na sepultura”... Nada de levar a urina num frasco e derramar lá; não,
isto não é mijar. O trato era verter o xixi in
natura...
Pelo
sim, pelo não – aduzia ele − agrada-me vir cumprindo esse compromisso com ela nos
últimos anos e é, exatamente, o que farei amanhã.
Objetamos
quanto ao pudor público, o constrangimento diante de tantas pessoas em visita
ao campo-santo no finados...
−Sem
problema, disse ele. Uso uma capa tipo sobretudo. Dá para disfarçar bem. E
acreditem, faço isto num gesto de carinho, do fundo de minha alma! Carinho
muito sincero, tá.
Pareceu
emocionar-se. Ficamos pensando na boa ideia do ilusionismo com o sobretudo.
Caspita! Sorte da prima,
que morreu primeiro. Para ela, mulher, certamente seria mais complicado.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publ. a 27.10.2011,em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena)
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