Outubro, 2011
Quadro: Eugène Delacroix - Hamlet e Horácio no cemitério
A constatação não é minha. Há tantos anos convivo com o determinado axioma hamletiano, aceitando-o inarredável, que confesso jamais ter empenhado nele um só instante de reflexão. Acabo de ler, entretanto, alguém que pegou Shakespeare pelo pé. O grande vate, pelo menos num momento de sua obra – para ser mais exato, no melhor momento – teria se colocado atrás de seu Hamlet, o príncipe da Dinamarca, no célebre monólogo da tragédia.
Desconfia-se – e eu apenas pego carona
na desconfiança – que naquelas reflexões sobre a vida de aquém-túmulo, estaria
falando antes o autor que o personagem. De fato, não seriam adequadamente
afetas às preocupações de um príncipe herdeiro de um reino, o Reino da Dinamarca,
as agruras arroladas como o fardo de uma vida de vicissitudes e misérias.
Parece óbvio que tais lamentos melhor
procederiam do espírito de um poeta atormentado que de um príncipe, falsamente
tresloucado. Repassemos as lamúrias cedidas pelo poeta ao príncipe, na cena com
Horácio e os dois rústicos, magistralmente recolhida, aliás, nos traços de
Delacroix:
“Ser ou não ser... Eis a questão. Que é
mais / nobre para a alma: suportar os dardos / e arremessos do fado sempre
adverso, / ou armar-se contra um mar de desventuras / e dar-lhes fim tentando
resistir-lhes? / Morrer... dormir... mais nada (...) É essa ideia que torna
verdadeira / calamidade a vida assim tão longa! /
Pois quem suportaria o escárnio e os
golpes / do mundo, a injustiça dos mais fortes, / os maus tratos dos tolos, a
agonia / do amor não retribuído, as leis morosas, / a implicância dos chefes e
o desprezo / da inépcia contra o mérito paciente, / se estivesse em suas mãos
obter sossego / com um punhal?”
Não parece ter havido algo de confessional
no reino da Dinamarca? Seja como for, o registro é de uma catarse pessoal
perpetrada pelo poeta no ano 1602, data provável do surgimento da peça. Temos
aí, pois, quatrocentos e alguns anos de atualidade!
Quão coerente à sua natureza imperfeita mantém-se a humanidade, apesar dos avanços sociais e tecnológicos dos últimos séculos! Ou quão adiantado em seu tempo esteve o poeta William Shakespeare ao esquadrinhar um purgatório de angústias que se comprovariam tão aderentes à condição humana!
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