Abril, 2010
Virem
a cara pra lá que meu papo, hoje, está meio sinistro.
Há
anos, no Rio de Janeiro, um notável dentista foi chamado a emitir laudo de
perícia em inquérito policial escabroso, de grande repercussão na imprensa
nacional. Apurava-se o assassinato de um empresário e sua esposa − com o enigmático
desaparecimento dos dois corpos.
O
dentista entrou na história a partir da exumação de um corpo de mulher,
aparecido na praia da Barra da Tijuca, por suspeição de ser o da esposa
assassinada. O delegado condutor das investigações requisitou perícia na arcada
dentária. Na condição de ex-dentista da extinta, seria aquele profissional o
melhor indicado para colaborar na identificação.
De
fato, pelo que apurou, tratava-se da esposa do empresário. O laudo odontológico,
entretanto, foi emitido com uma ressalva perturbadora: “Os trabalhos
odontológicos existentes na arcada sob exame foram feitos por mim. Alguns
dentes, todavia, contendo restaurações em ouro, foram arrancados após o
falecimento da paciente”.
Para
estupefação geral os jornais publicaram esse documento no dia seguinte, dando
conta à população do Rio de Janeiro de que havia, do lado de dentro dos
cemitérios ou das funerárias cariocas, bandidos atuando na extração de dentes a
cadáveres... Para negociar o ouro, claro.
Vinha
a público, naquele instante, mais uma sombria faceta da miséria humana.
Décadas
se passaram e a praga da iniquidade, do vício e do progressivo endemoniamento
das pessoas, só vem ganhando terreno. Já não se restringe aos grandes
aglomerados (sub) humanos. Chegou às cidades menores.
Há
dias, numa cidade do interior de Minas, o assunto entre os presentes a um
velório transcendia a menções de louvor às inegáveis virtudes do extinto.
Comentava-se que, a partir de certa hora da noite, haveria necessidade de presença
policial ou do fechamento da capela mortuária, para segurança de todos –
inclusive do morto!
É que,
noite alta, o “campo santo” costuma ser transformado em “fumódromo” para
maconheiros; em “fungódromo” para cocainômanos; em “desmonte” para ladrões das
peças de bronze dos jazigos; e até em “entreposto” para comércio de ossos
humanos por traficantes deste tipo de coisa...
Lá
estão dezenas de “derradeiras moradas” desfalcadas de imagens, crucifixos e
adereços outros, esculpidos em metal. Obra de jovens viciados que precisam “fazer”
o dinheiro da droga.
Vá lá
que isto não preocupe muito a certa visão classista segundo a qual necrópoles
só ostentam monumentos aos que venceram na vida. O granito não exalta
perdedores. Não abriga os que não têm onde cair mortos ou, no dizer de Oscar
Wilde, os que morrem abaixo dos próprios recursos.
O
fato é que, em desrespeito nefando ao porto dos que não desejaram partir, as
violações estão evidentes até no que se tropeça pelas alamedas. Falo de ossos. Hamletianos
coveiros informam qual é a questão:
Tão atrevidos
andam os traficantes que até eles, os rústicos da tragédia, são alvo de assédio
“para exumar um crânio perfeito, ao qual não faltem dentes”, cotado à macabra bagatela
de seiscentos reais! Claro, só pode ser para venda às faculdades particulares
que infestam este licenciado país.
E
ainda há quem mencione a paz dos cemitérios!
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(Publicada em 01.04.2010 http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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