Abril, 2010
Esta vem lá dos bons tempos.
É uma história verdadeira porque eu nunca fui de pregar mentira ou portador de
qualquer outro desvio de caráter. As pessoas que me conhecem sabem que sempre
fui honesto, trabalhador, bom filho, bom marido, cumpridor dos meus deveres,
quite com impostos, taxas e demais compromissos em que se enredaram todos os
brasileiros não inscritos no Bolsa Família. Uma pessoa de bem, enfim.
É certo que houve um dia
menos ditoso em minha existência – mas quem não passou por momentos desditosos
na vida? – em acabei por apertar a mão de um conhecido político da base de
apoio do governo. Com ajuda de Deus, entretanto, e de Santa Teresinha do Menino
Jesus, Teresinha de Lisieux, Doutora da Igreja e minha protetora, logrei sair
do infausto episódio sem a alma conspurcada.
Afinal, não passou de uma protocolar circunstância de ofício, decorrência nefasta do cargo que eu ocupava. Posso asseverar, de mãos postas, que o rápido contato palmar com a abjeta figura da nacionalidade pátria não me energizou júbilo mínimo à espinha.
De resto, o futuro deu provas de que se não contaminei a malsinada criatura com os dons louváveis do meu berço, dele para mim também não terá transitado toxinas de sua miséria moral. Imunidades recíprocas, de certo.
Por isto creiam no que digo. Esta história merece crédito eis que nos foi contada, a meus irmãos e a mim, por Tio Sebastião, um homem com oitenta anos de fidedignidade, justo e verdadeiro até quando nos divertia com “causos” de segunda mão. Se Tio Bastião falou – já viu, né – palavra de caçador. A bem dizer, caçador e sanfoneiro. Porque bom no fole ele também era.
O sucedido se deui conforme
o seguinte. O Tio acalentava um desejo antigo de entrar para o livro dos
recordes. Como sua principal área de atuação fosse a caçada, passou a maquinar
um meio de impetrar façanha inédita no setor. Primeiro investiu, de arma em
punho, sobre formações de patos selvagens em pleno voo, para ver quantos deles
emborcava ao chão numa única saraivada de chumbo. Fracasso total. Eram alvos em
movimento a uma altitude demasiado elevada para sua espingarda Flaubert e suas
pupilas já incomplacentes, pela idade. Resultados bisonhos: nunca baqueou mais
que dois ou três patos por tentativa.
Sua outra preferência em matéria de caça, as narcejas, revelou-se temerária para os amados cães perdigueiros do Tio. As terras ácidas onde as requisitadas aves viviam mostraram-se infestadas de cascavéis e foram raras as incursões em que algum dentre seus preciosos pointers, “levantadores” de fina estirpe, não fosse a óbito por picada de serpente.
Foi num dia de céu marrom
que lhe acudiu ideia extravagante: caçar rolinhas. Selecionou no mato uma vara
de bambu bem reta e sequinha e, com um facão, abriu-a longitudinalmente, ao
meio, obtendo um cocho de quatro metros de comprimento. Sobre duas forquilhas
fincadas no chão, apoiou as extremidades do bambu, nivelando-o a metro e meio
de altura. Em seguida, encheu os alvéolos, de ponta a ponta, com canjiquinha de
milho.
O resultado não se fez esperar. Em poucas horas todas as pombas rolinhas da região estavam informadas da “mesa posta” e, às dezenas, enchiam o papo enfileiradas ao longo do cocho de bambu. Tudo nos planos do futuro recordista na caça às rolinhas.
Postando-se numa das pontas do cocho, disfarçado de touceira de capim para não espantar os pássaros, Tio Bastião, diz ter mirado ao longo do comedouro e, disparando um único tiro de enfiada. Matou – segundo suas contas – quatrocentas e noventa e oito rolinhas.
Podem acreditar – insistia – já reuni testemunhas e vou homologar o feito no “Guinness Book of Records”, em Londres!
A gente se encantava:
–Tio, como o senhor é esperto! Quatrocentas e
noventa e oito rolinhas com um só tiro!... Diga uma coisa, Tio, por que o
senhor não arredonda e diz logo que foram 500 rolinhas?
Ao que ele respondia exemplar:
– E vocês querem que eu pegue fama de mentiroso só por causa de duas rolinhas!?...
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(Publ. em 15.04.2010, em
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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