Julho, 2003
O mínimo que se espera de um cronista é que ele saiba escolher assuntos que mereçam crônica. O problema é quando o assunto que não merece crônica embirra e não desocupa a moita. Não sei como agem cronistas sérios em tal situação. Eu, sem nome a zelar, pego o assunto que não merece crônica e faço uma crônica que não merece leitura. É o que acontece agora. Avisei, hem.
Olha, se não bebesse tanto, o carioca do
Méier, nosso amigo Caju, ainda estaria vivo. Passava o dia e boa parte da noite
num boteco do Catete, tranquilo, tranquilo, sentado num banquinho redondo,
daqueles altos de balcão de lanchonete, bicando cerveja e esticando conversa.
Isto, lá pelos anos 60. Nós, estudantes da
república “Solar do Outeiro”, na Glória, ao sairmos pela manhã, já topávamos o Caju
no bar do Caçapa em pleno desjejum etílico. No fim do dia, quando a gente
voltava, o homem continuava lá, firme, repetindo gestos, assuntando a rua. Mais
ou menos os mesmos casos, as mesmas piadas e companhias que também variavam pouco.
Só tinha graça porque éramos jovens. São
recordações da mocidade distante, revolvidas ontem num passeio, a pé, pelas
ruas do Flamengo e da Glória.
Caju aparentava, então, uns quarenta anos,
mal vividos. A tal altura da vida, não devia estar aposentado por idade. Por
doença também não. Ninguém com problema de saúde suportaria meia hora naquele
assento diminuto, sem encosto, com as pernas dependuradas. E ele se mostrava com
gás para não sair dali.
Nunca o vimos inteiramente tonto − até
porque cairia do banco. Algum alerta orgânico devia soar quando ele atingia o
limite etílico. Caso raro de golo sob controle.
Uma coisa nos intrigava: sabido que o
avaro Manoel Caçapa, dono do bar, um portuga pão-duro do tipo munheca
paralítica, não vendia fiado, quem financiaria as pingas do Caju? De onde vinha
a grana de manter na flauta um filósofo de boteco?
“A grande falha da criação − especulava −
foi Deus não ter dotado o ser humano com dois cérebros. Com dois, talvez um
aceitasse tratamento quando o outro começasse a bater pino.”
– Profundo, profundo! − a gente aderia.
Afinal temos dois pulmões, dois rins, dois olhos... Somente no futebol teríamos
um probleminha nas bolas divididas, não é Caju, com quatro cérebros
administrando a trombada...
De hoje a gente conclui que,
inconscientemente, ele buscava a fórmula da própria salvação, que seria um
cérebro sadio dando socorro ao cérebro exigente de álcool.
Minimizava a importância da bebida. O apego
ao Bar do Caçapa, por exemplo, estava no tempero do pernil assado.
– O pernil daqui, ó... Num tem!
Perguntaram se o pai dele era doido.
– Doido por quê?
– Ora, esse nome idiota que ele colocou em
você.
– Ih, nem fala! Meu pai foi um
irresponsável que resolveu brincar com o nome do filho. Colocou em mim o nome
dele, invertido. Ele era Juvenal, vulgo Juca, entende? Me registrou com as
sílabas do Juca, invertidas: Caju. Só que ele não bebia, eu bebo!...
Rá-rá-rá...
– Bom, então já que você abriu o coração,
Caju, aproveite e tire mais uma dúvida que a gente carrega há muito tempo. Quem
paga suas biritas?
– A lógica não muda. Meu pai trabalhava e
minha mãe ficava em casa de bobeira. Pra não contrariar o destino traçado pelo
meu pai, faço o inverso: minha mulher trabalha, eu fico bebendo na rua.
– Humm! Aí fecha.
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(Publicada na Gazeta de Leopoldina de 05.07.2003 e em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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