Julho, 2009
Tem gente que – como lá dizem – não regula da cabeça. Nunca fui contra os poetas herméticos versejarem apenas para aqueles que os entendem. Nem contra apreciadores do romance moderno, encontradiços entre seguidores e leitores de Joyce. Cada um desembarace o nó cego da estética que o persegue.
Digo
isto porque hoje pela manhã te procurei por todo lado, companheiro. Fui ao
desjejum sem ti. Corri ao banheiro atrás de um sinal de despedida, de uma
notícia, nada! Há os que somem sem explicação, como está no poema de Drummond.
E há o sentimento de culpa dos que não se perdoam.
Podes,
perfeitamente, nutrir certa mágoa pela aridez do nosso relacionamento. Nascido interiorano
e rude, às vezes maltrato os que me são caros. Desgastes em nossa relação?
Sinceramente, não sei. Mas não me custa reconhecer que não vinha mesmo sendo
legal contigo.
Com escassez
de tempo para repartir, sempre reservei para nós apenas as horas mortas dos
dias. Quase não nos vemos com amigos, não te levo a passeio, a um almoço fora,
ao chopinho da esquina. Passo, sim, a impressão de que me envergonho de ti.
Mantenho-te distante dos meus contatos profissionais, da minha convivência social
mais cerimoniosa.
Isto,
nunca mereceste! É como se eu o punisse sempre, na impiedade atestada por Dumas
Pai ao dizer que os grandes favores se pagam com ingratidão. Jamais te dedico
um carinho especial, um lencinho úmido de reconforto, um afago, um toque mais
íntimo de cumplicidade. Esqueço que nos meus momentos cruciais de dor e
desalento, sempre veio de ti o regaço acolhedor, o colo amigo em que me
aninhei.
Queira
perdoar, consorte de tantos anos, este coração avaro da mais escassa comiseração.
Mas saiba que, pensamentos frívolos à parte, meus chacras inferiores seguem
vassalos de teus mimos relaxantes.
Imagine
que inda agora, repensando abertamente nossa relação, acode-me que nem para
meus aniversários costumas ser convidado. Tudo bem que o rol dos obsequiados é
feito por minha esposa, e a fatuidade é um dom nas mulheres. Sentem-se, também,
as responsáveis por preservar aparências!
Que
me perdoes, amigo! Continuarás a ser, não obstante, o teúdo e manteúdo da minha
vida ancha de labor e poema. Seguiremos uma só alma, uma só carne. Feitos um
para ou outro, os anos vieram cinzelando na superfície acolhedora de teu ventre
o baixo relevo em que meus dedos se aquietam.
Volte
para casa, parceiro de tantas calmarias. Vamos envelhecer juntos! Quero
continuar a “amanhecer ao seu redor” – vá lá este verso do poetinha Antonio
Marcos. Preciso encontrá-lo sempre ao tatear com os pés, rente à cama, na
borracheira do sono e do cansaço. Seguirás meu porto seguro, a marca dos meus
passos.
Enquanto
vivo estiver, estarás comigo sob a tepidez sem rumo dos meus pés. Morto, pisaremos
o éter, meu acolhedor e venerado par de chinelos.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publicada em 25.07.2009 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.