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Agosto, 2011
A conversa de hoje vem lá dos anos setenta e lembra um personagem muito querido em minha terra, o saudoso Cônego Naves. Falecido em 1985, foi Cura da Catedral de Leopoldina, a cidade mineira onde nasci. Dispunha de todas as virtudes de um bom sacerdote, além de poeta e senhor de apurada cultura. Tinha lá inspirações ideológicas que às vezes irritavam os mais conservadores e costumava ser ranzinza com as noivas. Implicava demais com o tradicional atraso das “prometidas”.
No horário do casamento – valendo aí, com rigor, o que constava no convite – estacava-se, paramentado, à frente do altar e começava a conferir, nervosamente, o relógio. Se a noiva passasse da medida (medida dele) na charmosa delonga da chegada à igreja, a cerimônia podia ser declarada suspensa:
- Eu tinha, hoje, aqui, um casamento a celebrar, mas, infelizmente, o não comparecimento da noiva me obriga a agradecer a presença de todos e convidá-los para a Santa Missa a ser celebrada em seguida...
Um Deus nos acuda! Fazê-lo voltar da sacristia e retomar a cerimônia demandava esforço diplomático. Lágrimas borravam maquiagens primorosas.
Havia outra área sensível: casamento muito fashion. Ora, se noivas pobres não podiam ornamentar ricamente a igreja e entrar ao som de acordes de bom gosto, pompa e luxo deviam ser moderados também nos casamentos da classe média. Assim, coral do Conservatório, música ao vivo, mimosos arranjos de flores na (já) suntuosa Catedral, exigiam latim bem declinado para serem deferidos. Casa de Deus não é lugar de exibição.
Ecce Homo. Possuía, certamente, qualidades que excediam com sobras tais restrições. Era simpático, apesar de tudo, e pronunciava homilias talentosas que agradavam. A par da poesia acima lembrada, cultivava também certo pendor musical, que o levou a compor um belo hino de louvor a Leopoldina. Ele que nascera em São Sebastião do Paraíso.
Deixei meu interior logo após o ginásio e só pelos trinta anos estive, pessoalmente, com o Cônego Naves. Na penosa missão, aliás, de advogado de minha noiva que desejava casar-se ao som de Mozart... Ganhei a causa. Ele concordou não fazer sentido uma professora de piano caminhar, de véu e grinalda, até o altar meio a dezenas de convidados com as orelhas na posição mute.
Mas eis que, meses depois, o encontro no Rio de Janeiro, como protagonista da história que finalmente passo a contar, ocorrida no prédio do Banco do Brasil da esquina de Av. Rio Branco com Av. Presidente Vargas.
Via-me ali, certa manhã, enredado em meus misteres bancários, quando reconheci, no balcão das Ordens de Pagamento, a figura do Pe. Naves. Se querem uma ideia da pessoa, imaginem o Tancredo Neves vestido de batina. Era ele.
Já o atendia o jovem funcionário, José Breno Monteiro de Castro, também mineiro de Leopoldina – aliás, da seleta estirpe dos descendentes do Barão de Paraopeba, de Congonhas do Campo.
Por delicadeza e solidariedade conterrânea, fui apertar-lhe a mão no instante em que José Breno se oferecia a completar, para ele, o formulário.
- Oh, muito obrigado, meu filho, o remetente serei eu mesmo. Escreva aí, Gerardo Naves – Gerardo com R, por favor.
Breno estacou:
- Gerardo com R? Mas que coincidência, Cônego! Também o bispo de Leopoldina é Gerardo, com R!... O nosso querido, Dom Gerardo Ferreira Reis! (Este – anotação que faço agora – citado por Roberto Campos, no livro “A Lanterna na Popa”, como seu ex-colega no Seminário de Guaxupé, MG).
Mas seguiu o José Breno:
- Pelo visto, temos então dois Gerardos no Palácio Episcopal de Leopoldina; o Cura e o Bispo!
Aquiesceu o Cônego naquela entonação pausada e branda dos sermões de domingo:
- É verdade, meu filho. Enorme coincidência. Estamos lá, os dois “Gerardos”, no mesmo Paço Episcopal e na mesma Igreja ¬ a nossa bela Catedral de São Sebastião, sede do bispado de Leopoldina. Mas saiba que nos tornamos “Gerardos” por razões muito distintas! Muito distintas!
- O pai do Senhor Bispo foi homem ilustre, erudito, muito culto mesmo. Convencido de que Geraldo, o nome que pretendia dar ao filho, teria vindo do alemão “Gerhard”, optou pela reverência etimológica, batizando a criança como “Gerardo”.
Já o meu caso foi bem outro, meu filho, muito outro! Meu pobre pai, coitado, era um modesto tropeiro do Sul de Minas, quase iletrado, que ao dirigir-se ao Cartório do Registro Civil mal soube pronunciar corretamente o nome que escolhera para seu moleque. Seria Geraldo, mas ele pronunciou “Gerardo”, neste nosso sotaque matuto de tantas caçoadas... O escrivão, por literal deboche ou proximal incultura, assim me registrou: Gerardo, com R.
E arrematou filosófico:
- Donde eu concluo, meu filho, que em muitos casos ignorância e sabedoria se equivalem.
Sem dúvida, Cônego, sem dúvida.
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(Publicado em 18.08.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
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