Janeiro, 2011
Uma dessas pessoas que sempre
nos dizem coisas amenas e simpáticas me disse que sonhar colorido é bom. Quando
alguém diz que um acontecimento assim é bom, não interessa bom pra quê,
não é mesmo. Pode ser bom para a saúde, para os planos, para o espírito da pessoa – sei lá. Afinal não
sou chato ao ponto de questionar benefícios. É bom, ponto final. Que pintem
logo as obsequiosas mercês.
Esta noite sonhei ter
inventado um novo e radioso tom de sépia. Oops! Sonho colorido. Em linguagem
cinematográfica não muito atual, um sonho em tecnicolor. Meu sépia era
supinamente belo e a ele dei o nome de Sépia Virgínia, associando-o a
este sublime nome de mulher que tanto me fascina desde a adolescência. Não por
acaso meu sonho o terá tomado para definir a graça virginal do intocado matiz,
sua luminescência estreme e genuína.
Devo confessar que sempre
desejei ter uma filha que se chamasse Virgínia. Vencida, porém, em branco minha
etapa reprodutiva dei de planejar, faute de mieux, ter em casa uma fêmea
de arara azul à qual atribuir o luminoso nome. Tratando-se, entretanto, de pássaro
ameaçado de extinção, como de fato é, passei a considerar a necessidade de drumondianas
“milícias protegendo a arara”, o que me dissuadiu da quimera.
Mas voltando ao sonho cuja
memória ainda me acossa, acabara de criar assim a maviosa nuança do Sépia
Virgínia e não podia deixar que meu cérebro se desocupasse da tonalidade
antes de registrá-la em algum lugar, com pincel e tinta. Enfrentava, porém, ainda
no sonho, um duro questionamento. Certo personagem onírico, que não pude
distinguir se homem ou mulher, me desancava a criação objetando, de um púlpito
barroco, em severo discurso, que as cores primárias seriam apenas três – o
azul, o amarelo e o vermelho. Que a combinação entre elas, ou delas com as
cores secundárias, era uma rematada impostura, um plágio odioso da própria obra
divina, uma apropriação indébita pela qual eu haveria de pagar na justiça, dos
homens e de Deus!
Procurei defender-me do
inflamado tribuno buscando convencer, a ele e ao distinto público (muita gente
na plateia do meu sonho!) que meu opositor trazia à baila uma enorme tolice,
pois quem junta uma ou mais cores e chega a certo resultado é um inventor,
tanto quanto também o é quem junta um determinado número de parafusos e cria um
motor movido a margarina.
De mais a mais – acrescentava
eu, numa atitude segura de quem manjava de leis – os direitos hereditários do
Divino Criador sobre cores fundamentais, ou seja, Jesus de Nazaré, falecido há
muito mais de 70 anos, já estariam prescritos e Seu invento caído no domínio
público... E arrematava:
Se passou ao domínio público
não se pode falar em plágio!
Como os exemplos ilustram,
argumentei ainda que a mesma coisa já ocorrera com o belíssimo tango argentino,
Por una Cabeza. Sua passagem ao
domínio público permitiu fosse o mesmo tomado para tema do filme Perfume
de Mulher, sem que Hollywood precisasse pagar uma micra de direitos
autorais aos descendentes de Carlos Gardel e Le Pera .
Fim de papo, portanto!
Inventei um novo tom de sépia, prodigiosamente belo, e só me falta reproduzir o
extasiante matiz numa lâmina de porcelana ou metal para levá-lo a registro
naquele prédio cinza, ao lado da Universidade do Brasil, na Avenida Pasteur, no
Rio. Meus direitos autorais estarão assegurados. Um desdobramento seguinte
seria levar minha nova e prodigiosa cor aos pássaros – em sonho vale tudo – sugerindo
a Deus Pai, que a tudo preside e referenda, a criação de uma nova espécie de
saíras indizivelmente belas, na cor Sépia Virgínia.
Ante tantos devaneios, uma
angústia me comprimia o peito: e se eu não conseguisse, ao cabo de certo tempo
– ou, quem sabe, por toda a vida – reproduzir num papel, numa parede ou num
objeto qualquer, a minha cor? Se eu não conseguisse demonstrá-la? Afinal nunca
fui pintor.
Minha mulher é! Mas não sei
por que cargas d’água neste sonho ela não aparece em meu socorro!
Meu soberbo Sépia Virgínia
poderia vir a não ingressar no mundo!
Sem saída diante da situação
subi à tribuna com uma fala contraditória. Colocava em cheque toda a minha noite
de criatividade estética.
– A lei não pode admitir – discursei
enérgico – que uma criação artística não demonstrada seja declarada existente.
Trata-se – e minhas palavras assumiam um tom didático – do “princípio da
tangibilidade do invento”... Saibam os senhores que, noções abstratas à parte,
tudo mais que não se materialize diante de nossos olhos deve ser considerado ausente
do universo das coisas tangíveis. Ou o Sr. Pintor demonstra seu Sépia Virgínia
ou a cor será considerada inexistente!
Diabos! Era o criador
detonando sua própria criação! Acordei sobressaltado com atitude tão danosa a
meus interesses. Comentando com minha mulher, ela admite tudo não passar de
fruto da velha mania que tenho de querer ser “mais realista que o rei”...
– Ela está errada, e eu vou
provar isto num outro sonho, assim que possível.
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(Publicado em 27.01.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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