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segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Moça

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Junho, 2010

Gosto de música. O canto coral e o balé também me emocionam. Por acaso, ouvindo hoje uma sinfonia de Gustav Mahler, lembrei-me de uma bela mulher com passagem sem a mínima importância por minha vida.

Virginia Mahler – este seu nome – abrasileirada americana de Ohio, aguardava os primeiros raios de sol em sua varanda de frente para o mar, onde havia cadeiras de vime e duas redes. Seu cantinho preferido, entretanto, era a mureta que contornava o alpendre, onde podia sentar-se exposta aos olhares passantes, recostada nos ladrilhos da pilastra. Parecia gosto dela, reinar com naturalidade calculada sobre olhares e desejos convergentes.

Adoravelmente distraída, ocupava-se dos pés, da pele, das unhas – sua missão indeclinável e luminosa das manhãs de sábado. As pernas elegantes e sóbrias estendidas sobre o assento expunham uma tez alva e delicada, dando saber ao sol de ontem, um colorido sadio de pêssegos amadurecidos. Mãos sempre ocupadas dos cabelos claros e longos, submissos às repetidas intromissões da escova e dos dedos inquietos a voltá-los, ene vezes, com recorrente glamour.

Ao lado, perigando cair a um simples toque, um tubinho de (possível) protetor solar de formato especial, que a distância entre minha varanda e a dela não permitia distinguir com precisão. Mas pronto sempre chegava a vez de tomá-lo com delicadeza, derramar um pouquinho na palma da outra mão, e distribuir a benignidade do íntimo conteúdo pelos ombros perfeitos, pelos braços e ao longo das pernas olimpicamente torneadas. Também pelos joelhos supremos e pelos pés primorosamente esculpidos. Era Virginia Mahler sem qualquer aviso da intromissão de meus olhos inebriados.

Dali a pouco a moça se erguerá com nobreza e apanhará sua bolsa e virá por nossa rua em direção ao mar, com seu andar muito próprio. Como de costume, me dirá bom-dia ao passar, para que lhe conteste no mesmo augúrio, só eu avisado pelo poeta do quanto irá “de carinho preso no cerne do meu bom-dia”. 

Meus olhos necessariamente lhe seguirão os passos, no deleite de um caminhar personalíssimo, de impreciso encanto. Que passos seriam esses, em que flutua Virginia Mahler? 

Sem que se dê conta, é possível viver da emoção pela emoção, do fascínio que nos proporcionam as expectativas inviáveis, nutridas a cumprimentos cordiais e sorrisos reticentes.

Um dia correu a notícia de que a moça se mudara. Deixara o marido e, não sem algum escândalo. fora viver em São Paulo, com uma amiga, sua ex-aluna de balé...

Curioso! Nunca me havia ocorrido que Virginia lecionasse dança! Ou que tivesse a mínima ligação com música. Não nos teria faltado assunto. Mas agora é duas vezes tarde.

Reconsiderando o encanto no andar de Virgínia, entro a perscrutar ambiguidades que expliquem como a tal amiga possa ter entrado na história. São Paulo é uma cidade enorme. Certamente são muitas por lá as pessoas que se esfumam, envolvidas em dúvidas e mistério.

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(Publicada a 10.06.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

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