Junho, 2010
Gosto de música. O canto coral e o balé também me emocionam. Por acaso, ouvindo hoje uma sinfonia de Gustav Mahler, lembrei-me de uma bela mulher com passagem sem a mínima importância por minha vida.
Virginia Mahler – este seu nome –
abrasileirada americana de Ohio, aguardava os primeiros raios de sol em sua
varanda de frente para o mar, onde havia cadeiras de vime e duas redes. Seu cantinho
preferido, entretanto, era a mureta que contornava o alpendre, onde podia
sentar-se exposta aos olhares passantes, recostada nos ladrilhos da pilastra. Parecia
gosto dela, reinar com naturalidade calculada sobre olhares e desejos
convergentes.
Adoravelmente distraída, ocupava-se
dos pés, da pele, das unhas – sua missão indeclinável e luminosa das manhãs de sábado.
As pernas elegantes e sóbrias estendidas sobre o assento expunham uma tez alva
e delicada, dando saber ao sol de ontem, um colorido sadio de pêssegos amadurecidos.
Mãos sempre ocupadas dos cabelos claros e longos, submissos às repetidas
intromissões da escova e dos dedos inquietos a voltá-los, ene vezes, com recorrente
glamour.
Ao lado, perigando cair a um
simples toque, um tubinho de (possível) protetor solar de formato especial, que
a distância entre minha varanda e a dela não permitia distinguir com precisão. Mas
pronto sempre chegava a vez de tomá-lo com delicadeza, derramar um pouquinho na
palma da outra mão, e distribuir a benignidade do íntimo conteúdo pelos ombros
perfeitos, pelos braços e ao longo das pernas olimpicamente torneadas. Também pelos
joelhos supremos e pelos pés primorosamente esculpidos. Era Virginia Mahler sem
qualquer aviso da intromissão de meus olhos inebriados.
Dali a pouco a moça se erguerá
com nobreza e apanhará sua bolsa e virá por nossa rua em direção ao mar, com
seu andar muito próprio. Como de costume, me dirá bom-dia ao passar, para que lhe
conteste no mesmo augúrio, só eu avisado pelo poeta do quanto irá “de carinho
preso no cerne do meu bom-dia”.
Meus olhos necessariamente lhe
seguirão os passos, no deleite de um caminhar personalíssimo, de impreciso encanto.
Que passos seriam esses, em que flutua Virginia Mahler?
Sem que se dê conta, é possível
viver da emoção pela emoção, do fascínio que nos proporcionam as expectativas inviáveis,
nutridas a cumprimentos cordiais e sorrisos reticentes.
Um dia correu a notícia de que a moça
se mudara. Deixara o marido e, não sem algum escândalo. fora viver em São
Paulo, com uma amiga, sua ex-aluna de balé...
Curioso! Nunca me havia ocorrido
que Virginia lecionasse dança! Ou que tivesse a mínima ligação com música. Não
nos teria faltado assunto. Mas agora é duas vezes tarde.
Reconsiderando o encanto no andar
de Virgínia, entro a perscrutar ambiguidades que expliquem como a tal amiga
possa ter entrado na história. São Paulo é uma cidade enorme. Certamente são
muitas por lá as pessoas que se esfumam, envolvidas em dúvidas e mistério.
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(Publicada
a 10.06.2010 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)
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