Janeiro, 2010
Tem programa à minha espreita – pensei. E ruim, porque não existe programa bom
para quem chega do trabalho na sexta à noite sonhando com uma ducha generosa e
aquela esticada básica na rede pra interagir com as estrelas.
– Amor, você não adivinha quem ligou. A Bel. Hoje é aniversário do Galeno e
eles estão nos convidando para um chopinho honoris
causa.
– Chopinho honoris causa!
Claro que você agradeceu dizendo que não vamos porque eu estou com suspeita de dengue,
não foi?
– Que isto, amor, não diga bobagem, eles são tão gentis, tão gente boa! Eu sei
que você acha o papo do Galeno meio cansativo. Mas, afinal, ele é o marido da
minha melhor amiga e trata você muito bem. A Bel, por sua vez, é um amor de
criatura e só tem elogios para você. Grosseria não irmos. Por favor, rapidinho,
tome seu banho e troque de roupa. São 7 horas, marcamos para a meia noite, na
casa deles, na Barra da Tijuca.
– O quê! É hoje? Eu vou dirigir 200 km agora à noite, pegando esse trânsito
maluco para o Rio de Janeiro? E ainda tolerar o papo do Galeno?
– Não dramatize tanto, amor, vamos dirigindo devagarzinho, com calma.
– Bota devagarzinho nisto, não é querida! Já pensou o que vamos pegar de
engarrafamento nesta sexta de feriadão, daqui de Minas até a Barra, no Rio?
– Não é tão cansativo assim, a gente dorme lá, descansa e volta amanhã ou
depois.
– Virgem da Abadia! Dois dias de “colóquio unilateral” com o Galeno? O homem
parece rádio, blá-blá-blá, só fala, não deixa ninguém falar, não consegue
ouvir, é um surdo funcional! Não é por nada, não, Izilda, mas eu vou fazer uma
oração:
– Meu São Judas Tadeu, sei que é
difícil até para um santo milagroso como o senhor, mas faça alguma coisa por
este seu devoto, ó santinho recluso e enfumaçado da gruta do Cosme Velho!
– Pare com bobagem, meu queridinho, vamos pensar positivamente. Pior será
passarmos o fim de semana aqui nesta nossa Minas Gerais friorenta, sem opções
de lazer, lendo jornais e revistas de domingo.
– O que me desespera são as perguntas dele, sabe Izilda, uma emendada na outra.
E mais: toda afirmação que ele faz vem com desfecho interrogativo, a exigir
“sim” ou “não”. É o platusardil (ardil
de chato) que ele usa para escravizar as pessoas ao seu discurso. Não dá para
fingir que se está ouvindo. O homem é um megachato. Dono da verdade, não dá
descanso, não deixa “o inimigo” respirar.
Você já observou que em todas as histórias o Galeno se dá bem no final? Nos
casos dele, todo mundo entra de gaiato. Só ele triunfa. É o “mocinho” do filme.
O mundo do Galeno só tem índio e bandido pra ele matar. E já vou eu, mais uma
vez, fazer ponta num western spaghetti
com meu Giuliano Gemma preferido...
Já decidi. Eu vou, tá. Vou. Nunca soube dizer não a você. Só que desta vez,
Izilda, eu gostaria de ver você sofrendo comigo. Por favor, não fuja pra
conversar com a Bel. Participe comigo dos monólogos do Galeno. Ele vai falar
sem trégua, lecionar, doutrinar, arguir, contar vantagem, elogiar-se, cortar
sua frase ao meio toda vez que você abrir a boca, e, se você conseguir externar
alguma ideia, ele vai olhar pro outro lado em sinal de desdém à sua opinião.
Quero ver você firme como eu, politicamente correta o tempo todo, tá, só
meneando positivamente a cabeça.
–- Combinado?
Chegamos à Barra antes das onze da noite. Bel veio nos receber à porta, com o
que ela alegava ser uma “má notícia”. Só não nos havia telefonado, desmarcando
o encontro, porque desejavam demais nossa presença.
– Galeno não abriria mão de comemorar o niver
dele com vocês – disse. Mas imprevistos acontecem. Imaginem que de algumas horas
para cá ele passou a estar febril e inteiramente afônico. Sente dor na
garganta, coitado. Está falando como quem assopra. Ponham o carro pra dentro. Entrem.
Pois não é que acabou sendo, para nós, um bom fim de semana na praia. O
problema laringológico do nosso anfitrião desaconselhava gelados, o que
resultou em dois dias regados a scotch, do bom, no lugar de chope. Bel,
simpaticíssima, como sempre. Galeno certamente mereceria comemoração natalícia
menos silenciosa. Esteve o tempo todo ouvindo mais que falando, garganta
irritada, febril, cachecol em torno do pescoço. “Infelizmente”, quando começou
a articular melhor as palavras, no domingo, já estávamos de saída...
– Incrível, não é mesmo?
Para quem tem fé e confia em milagres, a Igreja de São Judas Tadeu, no Rio de
Janeiro, fica na Rua Cosme Velho, ali, bem pertinho do Largo do Boticário.
Recomendo.
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(Publ. a 21.01.2010,em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena)
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