Abril, 2013
Nesse
turbilhão de incitamentos que é a vida, sempre soube que um dia acabaria
contando a história de João Bolinha.
Ressalvo
que o “Bolinha”, do João, nada tinha a ver com obesidade. O apelido lhe foi pespegado
pela enorme habilidade que demonstrava com uma bola no pé, fazendo “embaixadas”.
Produzia de cem embaixadinhas para mais, sem deixar a peteca, no caso a bola,
cair. Repetia a façanha com laranjas, tampinhas de garrafa e outros descartáveis
sólidos. Daí que, desde os tempos secundários, “pra qualquer um na rua”, era o Bolinha!
Mineiros
do interior, aos dezoito anos buscamos escolas superiores no Rio de Janeiro. Um
cortiço na Glória nos protegia das intempéries e fazíamos refeições em restaurante
estudantil contíguo à Faculdade Nacional de Filosofia, no Castelo. Aliás,
filosofia veio a ser a escolha do Bolinha.
Fisicamente,
meu amigo não era alto nem atlético. Mas fazia um sucesso danado com as
garotas. O que mais sobressaia nele, além do talento malabarístico com a bola,
era a lucidez. Sempre nos passava, a nós seus amigos, a impressão de que aprendera
mais, lera mais, informara-se primeiro, sabia tudo.
No
restaurante da Faculdade, certa vez, Bolinha protagonizou o incidente notável que
pretendo relatar.
Um
amplo refeitório, onde cerca de sessenta estudantes almoçavam. Batia forte o
verão carioca, naquele recinto agravado por emanações calóricas, multibalsâmicas,
vindas da cozinha e pelo burburinho de rapazes e moças manejando talheres em salvas
de metal. O famoso “bandejão”.
Servidas
nossas porções, sentamos, Bolinha e eu, na primeira mesa disponível e iniciaríamos
o repasto quando uma bolota de papel-toalha, embebida em água, veio espocar dentro
da refeição do meu colega, emplastando-lhe de feijão a camisa.
Brincadeira
de mau-gosto ou provocação desafiadora? Conferiu-se
logo. Bolinha de um salto pôs-se de pé sobre a mesa e, erguendo a bandeja acima
da cabeça, obteve silêncio da plateia liberando um vagido selvagem próximo àquele
que, cinco anos depois, o psiquiatra de John Lennon, Arthur Janov, definiria
como grito primal.
Fez-se
silêncio e ele discursou com superioridade:
−Colegas,
atenção! Alguém arremessou ao meu prato esta bucha de papel molhado... (Pausa) Não
vou perguntar qual o filho-da-puta
fez isto porque sei que aqui neste espaço de ensino superior não convivemos com
bastardos.
Sei
que aqui dentro só temos verdadeiros homens!
Então
eu pergunto:
−
Quem atirou esta bolota na minha comida é HOMEM?
Ih!
A respiração geral deu uma travada na expectativa do desdobramento, que veio rápido.
Em mesa próxima, um sujeito forte, aparentando ser praticante de lutas
marciais, pôs-se de pé e confessou em voz alta:
−
João, eu atirei a bola. Nunca fui com tua cara. Falam que tu és inteligente, culto...
Mas eu sempre te vi como um bestalhão, metido a ser o tal e a ganhar namoradas
de todo mundo. Mas eu gostei da tua reação agora, ô cara. Tu és corajoso e “cabeça”
pacas. Não estou mais a fim de briga. Quero ser teu amigo. (E baixando a voz) Peço
desculpa pela merda que fiz.
Houve
aplausos não muito convictos. Mas João Bolinha teve a elegância de caminhar até
o avexado agressor e dar-lhe um abraço. Aí, sim, muitos aplausos.
Por
estas e por outras, Bolinha tornou-se líder estudantil e o perdi de vista. Só
vim a saber, tempos depois, que se metera na Guerrilha do Araguaia, para onde deslocou-se
em 1973, à procura da namorada, Maria Selma, codinome “Ceacé”, guerrilheira e também
ex-aluna de Filosofia na UFRJ. Parece que, denunciado por camponeses cooptados
pela repressão, João teria sido preso na selva, torturado e entregue ao CIEx.
Passou
à história como desaparecido político.
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