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Primeiro é bom conferir se todos os leitores, deste nosso mundo urbano meio leso, sabem o que é um “debulhador” de milho. Milho, impossível que alguém ignore ser a parte comestível daquela espiga cheia de grãozinhos amarelos que a gente vê por aí quando algum ambulante apregoa:
-Milho verde, cozido!...
Todo mundo já viu? Pois é. Aquilo é milho.
A gente do campo sabe, entretanto, que em regra o milho não é colhido verde. É colhido depois que a espiga fica inteiramente seca e os caroços duríssimos. Para levá-lo sob a forma de grãos aos engenhos de moagem, onde o cereal é transformado em fubá, farinha, canjica, ração, etc., o fazendeiro “debulha” o milho e o ensaca. Debulhar é soltar os grãos do sabugo. A máquina, manual ou elétrica, encarregada dessa tarefa é o “debulhador”.
-Muito prazer, Sr. Debulhador.
Trata-se de uma engenhoca simples, quase empírica. Um disco rotativo plano, de ferro, com dezenas de altos-relevos iguais a verrugas numa face. Esse disco gira a cerca de 3 centímetros de uma contra-superfície também plana, fixa. Introduzidas as espigas entre as duas peças, são elas dilaceradas pelas verrugas do disco em movimento, soltando os grãos.
Nossa conversa de hoje é sobre uma passagem ocorrida no dia em que meu tio, Lívio F. de Castro, comprou um debulhador elétrico para sua fazenda. O episódio demonstra a inclinação que o ser humano tem de atrair, para o pequeno mundo dos conhecimentos que domina, aqueles fatos mais complexos que lhe escapam ao entendimento. História absolutamente verídica, embora meu querido Tio Lívio, falecido há uns cinco anos, com sua imaginação fértil, levasse fama na família de grande inventor de “causos”.
O mundo acabara de assistir pela TV, em julho de 69, o astronauta Neil Armstrong pisar o solo da lua. Imagens extraordinárias, de dúvidas para os incrédulos e até de desconforto religioso para os crédulos. Gente estupefata, uns acreditando no que viam, outros negando.
Não é que o Tio Lívio - brincalhão que só ele - resolveu ouvir os empregados da fazenda sobre o tema.
No paiol, o debulhador de milho recém adquirido e ainda cheirando a tinta, pontificava como vedete. Os peões assuntavam com curiosidade o desempenho da máquina. Sem ela, o milho era debulhado só depois de extraída, na unha, a palha áspera de cada espiga. Em seguida, numa faina penosa de dar bolhas nas mãos, friccionar sabugo contra sabugo até a total soltura dos grãos. Um martírio! Agora, não. O debulhador trazia o progresso, velocidade, eficiência.
Sebastião do Turvo, encarregado do trato dos animais, só precisava girar uma chave elétrica, fazer a geringonça zoar que nem um avião e atochar-lhe, boca a dentro, espigas e mais espigas, com casca e tudo. Por uma abertura lateral a máquina cuspia sabugos e palha e, pela bica frontal, escorriam em festa os grãos de milho amarelinhos e soltos para um saco de aniagem.
Tio Lívio chegou puxando conversa:
-Vocês viram ontem na televisão? Parece que o americano colocou um homem na lua e vai trazer de volta. O sujeito desceu lá com um roupão branco parecido com esses de lidar com abelha africana, uma mochila nas costas, e eles filmando o rastro da botina na poeira... Inacreditável! E, virando-se para o retireiro, Toninho Barbatana:
-Você levou fé naquilo, Barbatana?
-Ah, sô Lívio, acho muito difícil. A bem dizer, eu não vejo na lua largueza suficiente pro um homem subir em riba dela. Não digo que, de perto, ela não seja um pouco maior. Mas o suficiente pro sujeito andar lá! Hã!... Acho que aí tem é coisa.
Mexeu com o carreiro, Josué do Radinho, um crente bíblico desses de abotoar camisa no pescoço.
-E você, Josué, acha que aquele homem andou mesmo na lua?
-Não patrão, não acredito não. Lua, estrela, céu, tudo isso faz parte dos mistérios de Deus. E “a palavra de Deus” diz que o homem “só verá a face do Senhor” depois de morto. O homem que pensa que pode ir a Deus usando uma escada, um avião, ou mesmo um foguete, é um ímpio para o qual não haverá salvação. O único caminho que nos aproxima da Casa de Deus é a fé. Tudo aquilo, pra mim, não passa de “escárnio na face de Deus”. Mentira da grossa, coisa do demônio.
Deixou por último o operador do equipamento, o tratador dos porcos, Sebastião do Turvo, homem de fala mansa e explicada:
-Bastião, você acha também que os americanos estão só enganando os trouxas?
Bastião do Turvo deu uma ajeitadinha no chapéu de palha, apoiou o cotovelo pesado na manivela do debulhador, deu uma varrida d`olhos pela máquina e filosofou:
-Meu chefe, que o negócio é duro de engolir, é. Mas eu penso conforme o seguinte: depois que o ser humano foi capaz de inventar um debulhador de milho igual a este, pra mim nada mais é impossível no mundo...
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪
(Publicado em 17.12.2009 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/ e no jornal LEOPOLDINENSE)
Primeiro é bom conferir se todos os leitores, deste nosso mundo urbano meio leso, sabem o que é um “debulhador” de milho. Milho, impossível que alguém ignore ser a parte comestível daquela espiga cheia de grãozinhos amarelos que a gente vê por aí quando algum ambulante apregoa:
-Milho verde, cozido!...
Todo mundo já viu? Pois é. Aquilo é milho.
A gente do campo sabe, entretanto, que em regra o milho não é colhido verde. É colhido depois que a espiga fica inteiramente seca e os caroços duríssimos. Para levá-lo sob a forma de grãos aos engenhos de moagem, onde o cereal é transformado em fubá, farinha, canjica, ração, etc., o fazendeiro “debulha” o milho e o ensaca. Debulhar é soltar os grãos do sabugo. A máquina, manual ou elétrica, encarregada dessa tarefa é o “debulhador”.
-Muito prazer, Sr. Debulhador.
Trata-se de uma engenhoca simples, quase empírica. Um disco rotativo plano, de ferro, com dezenas de altos-relevos iguais a verrugas numa face. Esse disco gira a cerca de 3 centímetros de uma contra-superfície também plana, fixa. Introduzidas as espigas entre as duas peças, são elas dilaceradas pelas verrugas do disco em movimento, soltando os grãos.
Nossa conversa de hoje é sobre uma passagem ocorrida no dia em que meu tio, Lívio F. de Castro, comprou um debulhador elétrico para sua fazenda. O episódio demonstra a inclinação que o ser humano tem de atrair, para o pequeno mundo dos conhecimentos que domina, aqueles fatos mais complexos que lhe escapam ao entendimento. História absolutamente verídica, embora meu querido Tio Lívio, falecido há uns cinco anos, com sua imaginação fértil, levasse fama na família de grande inventor de “causos”.
O mundo acabara de assistir pela TV, em julho de 69, o astronauta Neil Armstrong pisar o solo da lua. Imagens extraordinárias, de dúvidas para os incrédulos e até de desconforto religioso para os crédulos. Gente estupefata, uns acreditando no que viam, outros negando.
Não é que o Tio Lívio - brincalhão que só ele - resolveu ouvir os empregados da fazenda sobre o tema.
No paiol, o debulhador de milho recém adquirido e ainda cheirando a tinta, pontificava como vedete. Os peões assuntavam com curiosidade o desempenho da máquina. Sem ela, o milho era debulhado só depois de extraída, na unha, a palha áspera de cada espiga. Em seguida, numa faina penosa de dar bolhas nas mãos, friccionar sabugo contra sabugo até a total soltura dos grãos. Um martírio! Agora, não. O debulhador trazia o progresso, velocidade, eficiência.
Sebastião do Turvo, encarregado do trato dos animais, só precisava girar uma chave elétrica, fazer a geringonça zoar que nem um avião e atochar-lhe, boca a dentro, espigas e mais espigas, com casca e tudo. Por uma abertura lateral a máquina cuspia sabugos e palha e, pela bica frontal, escorriam em festa os grãos de milho amarelinhos e soltos para um saco de aniagem.
Tio Lívio chegou puxando conversa:
-Vocês viram ontem na televisão? Parece que o americano colocou um homem na lua e vai trazer de volta. O sujeito desceu lá com um roupão branco parecido com esses de lidar com abelha africana, uma mochila nas costas, e eles filmando o rastro da botina na poeira... Inacreditável! E, virando-se para o retireiro, Toninho Barbatana:
-Você levou fé naquilo, Barbatana?
-Ah, sô Lívio, acho muito difícil. A bem dizer, eu não vejo na lua largueza suficiente pro um homem subir em riba dela. Não digo que, de perto, ela não seja um pouco maior. Mas o suficiente pro sujeito andar lá! Hã!... Acho que aí tem é coisa.
Mexeu com o carreiro, Josué do Radinho, um crente bíblico desses de abotoar camisa no pescoço.
-E você, Josué, acha que aquele homem andou mesmo na lua?
-Não patrão, não acredito não. Lua, estrela, céu, tudo isso faz parte dos mistérios de Deus. E “a palavra de Deus” diz que o homem “só verá a face do Senhor” depois de morto. O homem que pensa que pode ir a Deus usando uma escada, um avião, ou mesmo um foguete, é um ímpio para o qual não haverá salvação. O único caminho que nos aproxima da Casa de Deus é a fé. Tudo aquilo, pra mim, não passa de “escárnio na face de Deus”. Mentira da grossa, coisa do demônio.
Deixou por último o operador do equipamento, o tratador dos porcos, Sebastião do Turvo, homem de fala mansa e explicada:
-Bastião, você acha também que os americanos estão só enganando os trouxas?
Bastião do Turvo deu uma ajeitadinha no chapéu de palha, apoiou o cotovelo pesado na manivela do debulhador, deu uma varrida d`olhos pela máquina e filosofou:
-Meu chefe, que o negócio é duro de engolir, é. Mas eu penso conforme o seguinte: depois que o ser humano foi capaz de inventar um debulhador de milho igual a este, pra mim nada mais é impossível no mundo...
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(Publicado em 17.12.2009 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/ e no jornal LEOPOLDINENSE)
muito bom o desfecho do causo.
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