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Junho, 2013
Vírgulas, em meus escritos, só as coloco quando o ouvido pede. Estudei pouco aquele troço que no meu tempo de ginásio chamavam de Análise Lógica. Isto me condenou, para o resto da vida, a mal apartar orações. Vacas, no curral da fazenda onde fui criado, eu apartava direito. Orações, precariamente. Para quem é da cidade, vou logo avisando que “apartar vaca” é separá-la do bezerro. Se não separar o bichinho morre de diarreia e mamãe-vaca não terá leite para as crianças, no dia seguinte.
Quando, acima, digo “ginásio”, a referência é ao que, hoje, denominam Estudo Fundamental. Ou seja, os quatro anos do antigo Ginasial, mais os três anos do Científico ou do Clássico.
Aliás, confesso que nunca entendi bem esse trem de “Ensino Fundamental”. Foi uma professora famosa, porém muito mais nova, de Niterói – Niterói, não, minto, de Itacoatiara (o desmembramento em Município é uma questão de tempo) – que me explicou tudinho.
Ao confessar, humildemente, que virgulo “de ouvido”, faço-o com o singular do órgão auditivo – não sei se perceberam – e já me apresto a explicar a impropriedade sintática, sabido, como ninguém ignora, que temos dois ouvidos, o que, no caso, tornaria cogente o plural, sob pena de arbitrária exclusão de um deles. Clarifico que meu singular se prende à quase inoperância de uma de minhas aurículas, a esquerda, por Deus girada ao off.
Não blasfemo nem invoco meu santo de modo vão ao asseverar intervenção divina na perda, parcial, da minha audição. Foram muitas as orações que fiz pelo silenciamento de um malsinado zumbido que, night and day, day and night, (Helô, Frank!) me abelhava a orelha esquerda. Desafortunadamente, fui atendido em minhas esperançosas súplicas ao alto, livrando-me do zumbido, mas – Homessa! – com ele ausentou-se também minha audição à sinistra. Ignorava-as codependentes, não sei se me entendem.
Aliás, no terreno das impingens da idade – a tempo corrijo-me − dos “achaques” da idade, o que sobremodo me atormenta hoje é o joelho. Um joelho? Não apenas – desnecessário adstringir-me – são os dois joelhos. Só que o direito revela-se bem mais zangado que o esquerdo.
Zanga que insiste, muito a despeito de eu já haver operado meniscos, se não me engano, no ano de 1995 ou 96. Talvez minta. Para ser exato, se não foi no segundo semestre de 95, certamente terá sido no primeiro, de 96. Por despicienda que pareça a informação, menciono-a com margem de segurança assaz confortável, eis que, não me esqueço, choveu a cântaros no dia em que me dirigia ao Hospital da Quinta da Boa Vista, no Rio. A Praça da Bandeira, como sempre, alagada. Um pandemônio!
Imaginem, já era assim no meu tempo de estudante, quando fazia refeições no SAPS, no final da Presidente Vargas. Os carros boiavam. Achegada, ali, tínhamos a rua Elpídio Boamorte. Perdas humanas a lamentar eram, entretanto, raras. Mas quantas perdas materiais, meu Deus, tangidas pelo enxurro ao Canal do Mangue!
Despreocupando-me, entretanto, de ilações importunas, insisto em que minha cirurgia de menisco terá ocorrido em janeiro, fevereiro ou março de 96, meses de verão chuvoso no hemisfério sul. Vocês não seriam capazes de imaginar o quanto chovia naquela manhã em que me dirigia ao ato cirúrgico! Ato, aliás, circunscrito a um simples procedimento endoscópico, pouquíssimo invasivo.
Janeiro ou Fevereiro seriam, assim, as duas hipóteses mais prováveis de incidência da indigitada intervenção, pois o verão abarca não mais que dez dias de dezembro do ano anterior, o que, estatisticamente, excluiria aquele mês.
Também é verdade que, indo o verão e suas chuvas copiosas, tão bem lembradas por Tom Jobim, na canção “Águas de Março”, indo, repito, até 21 de março, não deixa de ser possível ter-se dado a cirurgia também em março de 96. Dissuade-me, todavia, admitir tal hipótese a comemoração de meu natalício, exatamente a 31 do indigitado mês, data – diga-se en passant − coincidente com o Golpe Militar de 1964.
Lembro-me que cheguei a ser revistado, na Serra de Petrópolis, pelas tropas do General Mourão Filho. Topei com eles descendo a serra, em fila indiana, naquela noite histórica, noite mesma em que me dirigia a Minas Gerais para encontrar minha noiva, atual minha senhora. Seria de todo improvável que marcasse uma cirurgia eletiva (assevero que não houve urgência) para a véspera de minha data natalícia.
Ah, sim, ao dizer, de início, qualquer coisa sobre noções sintáticas, lembro-me ter mencionado certa operação, que fiz, de menisco. Não me acode se disse ter sido no joelho direito. Mas foi. Apenas me escapa o nome do ortopedista cirurgião. Lembro-me, sim, da anestesista. Moça morena, bonitinha. Não diria simpática porque me pareceu pouco comunicativa, muito compenetrada no que fazia.
A atitude dela até me passou certa tranquilidade – incrível essa capacidade que o cérebro tem de fixar até nossas lucubrações mais íntimas – já que consta como o grande perigo em qualquer cirurgia, segundo dizem, o chamado choque anafilático. Que é quando o organismo reage ao anestésico. Pode levar o paciente a óbito.
Minha cunhada tem um genro – retifique-se, aliás, em tempo: o moço é cunhado dela, pelo lado do ex-marido de seu segundo casamento − que é alérgico a vários princípios ativos. Anda, sempre, com comprimidos de Allegra no bolso e um bilhete bem legível, na carteira, com a rogativa: “Em caso de desfalecimento ou convulsão, ministrem-me Allegra”.
Felizmente, segundo ele mesmo confessa, nunca desfaleceu ou sofreu convulsão. Apenas leu, na bula de um fármaco que alergias severas podem levar a convulsões e a paradas cardíacas. Ignora – disse-me numa das subidas que regularmente fazíamos, pelas trilhas, à Pedra da Gávea − se a alergia dele é severa, mas, por via das dúvidas, julga melhor prevenir-se.
Curiosamente, dizem que Machado de Assis manifestava convulsões. Sofria de epilepsia, doença hereditária que, inclusive, ele Machado, teria transmitido ao filho da esposa de outro grande romancista, seu confrade na Academia.
Por falar nisto, não me ocorre agora o ano em que a estátua de Machado de Assis, sentado numa poltrona, foi removida da frente do Petit Trianon, na Av. Presidente Wilson, no Rio, para o saguão do novo prédio da Academia, um edifício de mais de quinze andares. Portentoso, aquele prédio, para quem o contempla de longe!
Para entrar nele tem que saber colocar vírgula.
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