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domingo, 9 de junho de 2013

Chato? Quem?

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Junho, 2013

Vírgulas, em meus escritos, só as coloco quando o ouvido pede. Estudei pouco aquele troço que no meu tempo de ginásio chamavam de Análise Lógica. Isto me condenou, para o resto da vida, a mal apartar orações. Vacas, no curral da fazenda onde fui criado, eu apartava direito. Orações, precariamente. Para quem é da cidade, vou logo avisando que “apartar vaca” é separá-la do bezerro. Se não separar o bichinho morre de diarreia e mamãe-vaca não terá leite para as crianças, no dia seguinte.

Quando, acima, digo “ginásio”, a referência é ao que, hoje, denominam Estudo Fundamental. Ou seja, os quatro anos do antigo Ginasial, mais os três anos do Científico ou do Clássico.

Aliás, confesso que nunca entendi bem esse trem de “Ensino Fundamental”. Foi uma professora famosa, porém muito mais nova, de Niterói – Niterói, não, minto, de Itacoatiara (o desmembramento em Município é uma questão de tempo) – que me explicou tudinho.

Ao confessar, humildemente, que virgulo “de ouvido”, faço-o com o singular do órgão auditivo – não sei se perceberam – e já me apresto a explicar a impropriedade sintática, sabido, como ninguém ignora, que temos dois ouvidos, o que, no caso, tornaria cogente o plural, sob pena de arbitrária exclusão de um deles. Clarifico que meu singular se prende à quase inoperância de uma de minhas aurículas, a esquerda, por Deus girada ao off.

Não blasfemo nem invoco meu santo de modo vão ao asseverar intervenção divina na perda, parcial, da minha audição. Foram muitas as orações que fiz pelo silenciamento de um malsinado zumbido que, night and day, day and night, (Helô, Frank!) me abelhava a orelha esquerda. Desafortunadamente, fui atendido em minhas esperançosas súplicas ao alto, livrando-me do zumbido, mas – Homessa! – com ele ausentou-se também minha audição à sinistra. Ignorava-as codependentes, não sei se me entendem.

Aliás, no terreno das impingens da idade – a tempo corrijo-me − dos “achaques” da idade, o que sobremodo me atormenta hoje é o joelho. Um joelho? Não apenas  – desnecessário adstringir-me – são os dois joelhos. Só que o direito revela-se bem mais zangado que o esquerdo.

Zanga que insiste, muito a despeito de eu já haver operado meniscos, se não me engano, no ano de 1995 ou 96. Talvez minta. Para ser exato, se não foi no segundo semestre de 95, certamente terá sido no primeiro, de 96. Por despicienda que pareça a informação, menciono-a com margem de segurança assaz confortável, eis que, não me esqueço, choveu a cântaros no dia em que me dirigia ao Hospital da Quinta da Boa Vista, no Rio. A Praça da Bandeira, como sempre, alagada. Um pandemônio!
Imaginem, já era assim no meu tempo de estudante, quando fazia refeições no SAPS, no final da Presidente Vargas. Os carros boiavam. Achegada, ali, tínhamos a rua Elpídio Boamorte. Perdas humanas a lamentar eram, entretanto, raras. Mas quantas perdas materiais, meu Deus, tangidas pelo enxurro ao Canal do Mangue!

Despreocupando-me, entretanto, de ilações importunas, insisto em que minha cirurgia de menisco terá ocorrido em janeiro, fevereiro ou março de 96, meses de verão chuvoso no hemisfério sul. Vocês não seriam capazes de imaginar o quanto chovia naquela manhã em que me dirigia ao ato cirúrgico! Ato, aliás, circunscrito a um simples procedimento endoscópico, pouquíssimo invasivo.

Janeiro ou Fevereiro seriam, assim, as duas hipóteses mais prováveis de incidência da indigitada intervenção, pois o verão abarca não mais que dez dias de dezembro do ano anterior, o que, estatisticamente, excluiria aquele mês.

Também é verdade que, indo o verão e suas chuvas copiosas, tão bem lembradas por Tom Jobim, na canção “Águas de Março”, indo, repito, até 21 de março, não deixa de ser possível ter-se dado a cirurgia também em março de 96. Dissuade-me, todavia, admitir tal hipótese a comemoração de meu natalício, exatamente a 31 do indigitado mês, data  –  diga-se en passant  −  coincidente com o Golpe Militar de 1964.

Lembro-me que cheguei a ser revistado, na Serra de Petrópolis, pelas tropas do General Mourão Filho. Topei com eles descendo a serra, em fila indiana, naquela noite histórica, noite mesma em que me dirigia a Minas Gerais para encontrar minha noiva, atual minha senhora.  Seria de todo improvável que marcasse uma cirurgia eletiva (assevero que não houve urgência) para a véspera de minha data natalícia. 

Ah, sim, ao dizer, de início, qualquer coisa sobre noções sintáticas, lembro-me ter mencionado certa operação, que fiz, de menisco. Não me acode se disse ter sido no joelho direito. Mas foi. Apenas me escapa o nome do ortopedista cirurgião. Lembro-me, sim, da anestesista. Moça morena, bonitinha. Não diria simpática porque me pareceu pouco comunicativa, muito compenetrada no que fazia.

A atitude dela até me passou certa tranquilidade – incrível essa capacidade que o cérebro tem de fixar até nossas lucubrações mais íntimas –  já que consta como o grande perigo em qualquer cirurgia, segundo dizem, o chamado choque anafilático. Que é quando o organismo reage ao anestésico. Pode levar o paciente a óbito.

Minha cunhada tem um genro – retifique-se, aliás, em tempo:  o moço é cunhado dela, pelo lado do ex-marido de seu segundo casamento − que é alérgico a vários princípios ativos. Anda, sempre, com comprimidos de Allegra no bolso e um bilhete bem legível, na carteira, com a rogativa: “Em caso de desfalecimento ou convulsão, ministrem-me Allegra”.

Felizmente, segundo ele mesmo confessa, nunca desfaleceu ou sofreu convulsão. Apenas leu, na bula de um fármaco que alergias severas podem levar a convulsões e a paradas cardíacas. Ignora – disse-me numa das subidas que regularmente fazíamos, pelas trilhas, à Pedra da Gávea − se a alergia dele é severa, mas, por via das dúvidas, julga melhor prevenir-se.

Curiosamente, dizem que Machado de Assis manifestava convulsões. Sofria de epilepsia, doença hereditária que, inclusive, ele Machado, teria transmitido ao filho da esposa de outro grande romancista, seu confrade na Academia.

Por falar nisto, não me ocorre agora o ano em que a estátua de Machado de Assis, sentado numa poltrona, foi removida da frente do Petit Trianon, na Av. Presidente Wilson, no Rio, para o saguão do novo prédio da Academia, um edifício de mais de quinze andares. Portentoso, aquele prédio, para quem o contempla de longe!
Para entrar nele tem que saber colocar vírgula.

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(Publicado a 07.06.13 em http://www.bloghetto.com.br/ )

sábado, 11 de maio de 2013

Minha Cura


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Maio, 2013


Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.
– Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.
– Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa feita...

(Menotti Del Picchia – Juca Mulato)

Aos vinte e três anos, já residindo no Rio de Janeiro, apareceu-me uma ziquizira dos diabos na cabeça. Mais exatamente no cabelo, a preciosa matéria prima engomada do meu topete elvispresleyano! Apavorado, procurei médico e o diagnóstico declinado foi uma “possível psoríase”. Conceito hermético que só fez aumentar meu desespero.

Tratando-se de uma doença autoimune – lecionou-me o esculápio – vá usando este sabonete antisséptico até melhor avaliação.

Meus cabelos se soltavam aos tufos. Marineide, nossa cozinheira na pensão da Glória, prolatou sentença terrível: – Ele tá com pelada! Doença horrorosa. Faz a cabeça ficar desértica e repulsiva como os costados de um cão sarnento.
Credo em cruz! Fiquei triste com a Marineide, mesmo sendo a danada capaz de fritar batata doce como só Da. Lira, minha avozinha querida, costumava fazer.

Dona Ruth, a octogenária dona da casa, aconselhou-me um homeopata famoso, Dr. Molica, com consultório em Copacabana. Procurei saber: consultas a partir das sete da manhã, ordem de chegada. Fui lá. “Senhas” esgotadas!
–Isto não é assim não, explicou-me a secretária. Antes das seis já tem gente na fila pra pegar vaga. Volte amanhã.

Voltei. Cinco da madrugada. Consultório lá em cima, mas a fila se formava na portaria do prédio, esticando-se pela calçada do Cinema Metro, na Av. Copacabana. Andou às sete, com a chegada do médico.

Mas valeu. Às nove eu já era um paciente esperançoso aviando a latinidade da minha receita na farmácia homeopática da Rua São José, no Centro. Já saí dali com cinco vidrinhos contendo bolinhas de açúcar encantado. Ou bento, se preferem.

Tomava as bolotinhas com neurótica pontualidade. O cabelo, entretanto, continuava a descer-me pelos ombros. Angustiado, apelei para outro dermatologista. A receita foi nova marca de sabonete antisséptico.
Pintou feriadão, me mandei para Minas. Na fazenda, Neneco Passarim, o carreiro de boi, aconselhou-me procurar o Preto Velho, Horácio, mandingueiro entendido em ervas e benzedor emérito. Corri nele.

O velho assuntou sem emoção minhas brechas cimeiras, pigarreou arrastado e declarou:
– É cobreiro! Vamo benzê isso. Vá pra trás daquela porta, ali –  apontou-me a porta que dava, da sala onde estávamos, para o quarto dele. Encantoei-me lá como uma vassoura, rente às dobradiças.

– Agora vou fazê a reza – declarou. Quando eu pruguntá, “O quê que eu te benzo”, cê responde: “Cobreiro”.  Entendeu?

– Entendi, Horácio.

Dito isto ele se ajoelhou com uma das pernas, apoiou os cotovelos na outra e passou a orar guturalmente:
– Bzzzeerrss-bzzreee-e-que-benzo-bzzrreee-zzz.... O quê que eu te benzo?
–  Cobreiro – eu respondi.
– Bzzzeerrss-bzzreee-e-que-benzo-bzzrreee-zzz.... O quê que eu te benzo?
– Cobreiro – respondi novamente.
– Bzzzeerrss-bzzreee-e-que-benzo-bzzrreee-zzz.... O quê que eu te benzo?
– Cobreiro – segui replicando.
– Bzzzeerrss-bzzreee-e-que-benzo-bzzrreee-zzz.... O quê que eu te benzo?

– Cobreiro..... Cobreiro.....Cobreiro..... Cobreiro....

Não sei quantas vezes pronunciei a palavra Cobreiro. Foram muitas. Tantas que, dias depois, meu cabelo parou de cair. E não caiu mais. A não ser modicamente, anos afora, como convinha a meu legado genético.

Sei lá o que me curou. A homeopatia do Dr. Molica? Os sabonetes dos alopatas? Ou foi a benzeção do Horácio?

Consta que uma fase de grande estresse pode ocasionar queda súbita de cabelos. De fato, ali pelos vinte e poucos anos eu sonhava ser dono do mundo. Só depois, com as topadas da vida,  “os sonhos, um por um, céleres,” voaram.

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(Publicado a 24.05.13 em http://www.bloghetto.com.br/ )

O Bananal do Magela


***
Abril, 2013


Filho de ruralistas, Magela esteve perto de realizar um sonho. Deixar a vida de serventuário da justiça carioca, mudar-se para um sítio e cuidar da plantação de bananas.

Necas de levantar todas as manhãs, pegar ônibus, enfrentar engarrafamento e costurar processos. Às favas com advogados reclamando andamento dos feitos, da lerdeza na expedição de ofícios, delongas na conclusão dos autos ao juiz...  Ora, ora – pensou – são mais de doze milhões de habitantes, no Rio, ávidos de encontrar bananas, madurinhas, nas feiras e nas mercearias. O negócio é plantar banana.

Um sitiozinho na Serra do Mar, recentemente recebido por herança do sogro, vinha a calhar. Magela havia lido e deglutido que bananeiras plantadas com técnica são altamente rentáveis, já a partir do segundo ano. Aprendeu também que a Região Serrana, onde entrou a ser feliz proprietário do “Sítio Madre Ceres”, possui clima bastante apropriado ao cultivo da apreciada fruta.

Portanto, adeus prateleiras empoeiradas, dossiês mal enjambrados, soltando as folhas e as capas, adeus papelada, adeus carimbos, adeus tramitações melífluas! Vamos nessa! Ar puro, paisagem, canto de pássaros, arrulho de cachoeira e trabalho compensador nas atlânticas faldas serranas.  Demitiu-se na esteira do sonho.

Só que a realidade escapou um pouco aos cálculos do Magela. Faltou, por exemplo, programar a “colocação” do produto.  Quando veio a primeira safra de bananas nosso novel agricultor alugou caminhão, encheu-o até onde pode e desceu a serra na direção do Rio de Janeiro. Parou no Mercado São Sebastião onde pensava vender toda a carga de uma só vez... Deu zebra!

– Não negociamos de improviso, amigo, temos nossos fornecedores – disseram-lhe.

– Ih, por esta eu não esperava. Terei que vender estas bananas, direto, nos supermercados – pensou o Magela.

Mas o obstáculo continuou:

– Impossível a negociação, meu senhor. As compras deste supermercado são programadas pela sede, com antecipação e fornecedores tradicionais.

Putz! – lamentou. Vender pequenas quantidades, em quitandas, não dá. Não vai compensar o diesel do caminhão.
Já sei – decidiu. Vou com esta carga para a Central do Brasil vender bananas a granel para o público.

Em frente ao Panteão Duque de Caxias subiu na carroceria e começou a apregoar bananas “a preço de banana”. Juntou gente. Foi virando ôba-ôba! Em poucos minutos encostou o primeiro veículo policial de pisca-alerta ligado... O segundo... O terceiro já era um camburão...

– Documentos da viatura e a “autorização” para venda de produtos alimentícios em via pública.

– Não tenho autorização alguma – confessou o transgressor.

– Pois então puxe esse caminhão daqui senão o senhor será preso por comércio ambulante ilegal – bradou a autoridade.

Enfezado, o Magela se desesperou:

– Não posso vender, mas posso dar as bananas! Alô minha gente – passou a berrar:

– Bananas de graça! Bananas de graça! Bananas de graça!

E, de cima do caminhão, atirava bananas às pencas na cabeça dos atarantados populares da Central.

Encurtando conversa. O Inquérito Policial por “perturbação da paz pública” deu uma dor de cabeça danada ao agricultor/réu, mas veio a ser arquivado sem maiores consequências. Talvez a Promotoria tenha se sensibilizado com o drama do ex-serventuário.

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(Publicado a 19.05.13 em http://www.bloghetto.com.br/ )

João Bolinha


Abril, 2013

Nesse turbilhão de incitamentos que é a vida, sempre soube que um dia acabaria contando a história de João Bolinha.

Ressalvo que o “Bolinha”, do João, nada tinha a ver com obesidade. O apelido lhe foi pespegado pela enorme habilidade que demonstrava com uma bola no pé, fazendo “embaixadas”. Produzia de cem embaixadinhas para mais, sem deixar a peteca, no caso a bola, cair. Repetia a façanha com laranjas, tampinhas de garrafa e outros descartáveis sólidos. Daí que, desde os tempos secundários, “pra qualquer um na rua”,  era o Bolinha!

Mineiros do interior, aos dezoito anos buscamos escolas superiores no Rio de Janeiro. Um cortiço na Glória nos protegia das intempéries e fazíamos refeições em restaurante estudantil contíguo à Faculdade Nacional de Filosofia, no Castelo. Aliás, filosofia veio a ser a escolha do Bolinha.

Fisicamente, meu amigo não era alto nem atlético. Mas fazia um sucesso danado com as garotas. O que mais sobressaia nele, além do talento malabarístico com a bola, era a lucidez. Sempre nos passava, a nós seus amigos, a impressão de que aprendera mais, lera mais, informara-se primeiro, sabia tudo.

No restaurante da Faculdade, certa vez, Bolinha protagonizou o incidente notável que pretendo relatar.

Um amplo refeitório, onde cerca de sessenta estudantes almoçavam. Batia forte o verão carioca, naquele recinto agravado por emanações calóricas, multibalsâmicas, vindas da cozinha e pelo burburinho de rapazes e moças manejando talheres em salvas de metal. O famoso “bandejão”.  

Servidas nossas porções, sentamos, Bolinha e eu, na primeira mesa disponível e iniciaríamos o repasto quando uma bolota de papel-toalha, embebida em água, veio espocar dentro da refeição do meu colega, emplastando-lhe de feijão a camisa.

Brincadeira de mau-gosto ou provocação desafiadora?  Conferiu-se logo. Bolinha de um salto pôs-se de pé sobre a mesa e, erguendo a bandeja acima da cabeça, obteve silêncio da plateia liberando um vagido selvagem próximo àquele que, cinco anos depois, o psiquiatra de John Lennon, Arthur Janov, definiria como grito primal.

Fez-se silêncio e ele discursou com superioridade: 
−Colegas, atenção! Alguém arremessou ao meu prato esta bucha de papel molhado... (Pausa) Não vou perguntar qual o filho-da-puta fez isto porque sei que aqui neste espaço de ensino superior não convivemos com bastardos.
Sei que aqui dentro só temos verdadeiros homens!

Então eu pergunto:
− Quem atirou esta bolota na minha comida é HOMEM?

Ih! A respiração geral deu uma travada na expectativa do desdobramento, que veio rápido. Em mesa próxima, um sujeito forte, aparentando ser praticante de lutas marciais, pôs-se de pé e confessou em voz alta:

− João, eu atirei a bola. Nunca fui com tua cara. Falam que tu és inteligente, culto... Mas eu sempre te vi como um bestalhão, metido a ser o tal e a ganhar namoradas de todo mundo. Mas eu gostei da tua reação agora, ô cara. Tu és corajoso e “cabeça” pacas. Não estou mais a fim de briga. Quero ser teu amigo. (E baixando a voz) Peço desculpa pela merda que fiz.

Houve aplausos não muito convictos. Mas João Bolinha teve a elegância de caminhar até o avexado agressor e dar-lhe um abraço. Aí, sim, muitos aplausos.

Por estas e por outras, Bolinha tornou-se líder estudantil e o perdi de vista. Só vim a saber, tempos depois, que se metera na Guerrilha do Araguaia, para onde deslocou-se em 1973, à procura da namorada, Maria Selma, codinome “Ceacé”, guerrilheira e também ex-aluna de Filosofia na UFRJ. Parece que, denunciado por camponeses cooptados pela repressão, João teria sido preso na selva, torturado e entregue ao CIEx.

Passou à história como desaparecido político. 

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(Publicado a 03.05.13 em http://www.bloghetto.com.br/ )

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A faquinha do Jeca


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Era domingo, dia final da Exposição Agropecuária da cidade mineira de Santana da Piedade. Na praça principal algumas pessoas presenciavam o embarque dos animais expostos, de volta às suas respectivas fazendas. Proprietários rurais e tratadores, orgulhosos de seus touros, de suas vacas e de seus cavalos, procuravam acomodá-los com desvelos de enfermeiros nos caminhões adaptados ao transporte dos preciosos puro-sangue.
Carlinhos de Abaíba, fazendeiro tão abastado quanto apaixonado por seu gado, ostentava no próprio cangote a reluzente medalha de ouro, suspensa por uma fita amarela e verde, que no dia da premiação foi deferida ao pescoço de seu campeoníssimo touro, Baobá.
Boi “esquentado” na presença de muita gente – dizia − Baobá pode irritar-se e danificar o troféu numa cabeçada azarada. Orgulhoso de seu Nelore, Carlinhos se gabava de como acabara de recusar quatro milhões de reais pelo campeão.
− O Gaúcho realmente me ofereceu quatro  “pernas” pelo boi, mas eu disse pra ele: “Quatro milhões de reais, meu amigo, é boa grana. Dinheiro grosso, sim, mas é fortuna que muita gente, por aí, possui. Já um touro como o Baobá, nesse Brasilzão de meu Deus, só eu posso dizer que o tenho! E vou continuar dono dele.”
Assim, com a altivez dos ungidos, seguia na assistência ao embarque de seu portentoso exemplar, o qual, naquele instante, regateava um pouco ao esforço dos peões de fazê-lo galgar a rampa de madeira e entrar no acolchoado caminhão-baú que o levaria de volta às suas fêmeas de elite.
− Vamos, Baobá! Ôôôô! Sobe, Baobá! Sobe, Baobá!… Justo nesse momento crítico do embarque, eis que um vira-latas de rua, julgando-se convocado pelo vozerio de homens com os quais sua espécie é solidária há quatorze mil anos, resolve desincumbir-se de sua missão no mundo, que, naquele instante, seria “ajudar” os boiadeiros. Parte para cima do colossal zebuíno com rosnados e latidos arrogantes, indo aplicar uma dentada bem no prepúcio róseo do Baobá.
Ah, pra quê! O touro entrou em dia de fúria. Arrebentou o cabresto, jogou a volumosa carcaça vacum sobre o frágil cercado que guarnecia o embarcadouro e, liberto, estourou, enfurecido, pela praça. Meninos subiam nas árvores, homens e mulheres se refugiavam nas casas, entalando-se portas adentro. Um Deus nos acuda. O largo central de Santana da Piedade ficou às moscas.
Apenas, no meio da praça, sentado sobre o ornato histórico de um antigo carroção de madeira de quatro rodas, um homem magro de pele tostada, chapéu surrado, camisa xadrez, calça cáqui e botina chapiscada de esterco – alheio a tudo − preparava seu cigarrinho de fumo de rolo. A palha de milho já aparada, atrás da orelha, esfarelava ele as fibras do tabaco na palma da mão, com sua indefectível faquinha de ponta presa entre os dedos.
Bufando e correndo em círculos, cauda recurvada para cima, o touro enfurecido não demorou muito a dar com o apalermado cidadão e partir para cima dele. Coitado do Baobá! Sabia pouco de matuto mineiro. Levantando as pernas para livrá-las das poderosas aspas do animal, o roceiro jogou-se para trás, deixando a madeira lateral do pesado carroção livre para a poderosa testada do Baobá. O bicho chegou a cambalear, acusando a pancada.
A segunda investida viria mais raivosa. O jeca, porém, já rolara para debaixo do carroção, agarrando-se ao eixo de ferro roliço, de tal sorte que, para onde fosse aquela geringonça ao sabor das cabeçadas do Baobá, para lá também iria ele, inteiramente protegido.
A fúria do animal  parecia aumentar. Ávido por alcançar o tinhoso tabaréu debaixo da carruagem, passou o touro a aplicar chifradas sob ela, ameaçando virá-la de rodas para o ar. Não imaginava o boi que, ao abaixar demais a cabeça, oferecia ao “inimigo” o ponto nevrálgico por onde todo boi morre nas arenas hispânicas e nos matadouros do mundo: a nuca. O erro lhe seria fatal.
Numa arremetida dessas a faquinha do jeca espetou de morte a nuca do Baobá, que, para desespero do dono, aquietou no chão suas vinte e oito arrobas de carne de primeira. Mortinho da silva.
Carlinhos de Abaíba, num alpendre fronteiriço, ameaçou perder o fôlego e teve que ser abanado com chapéu de palha. Adeus, filhotes de alto pedigree! Quinhentos  reais para cada cobertura de vaca no cio, nunca mais! E os quatro milhões recusados ao Gaúcho, ali estendidos no chão em cotação de açougue!
Quando o matuto saiu de sob o carroção a plateia pôde constatar que não se tratava de nenhum atleta. Meio corcundinha, de certa idade, até mancava da perna direita − possível artrose sexagenária. E foi manquitolando que ele se dirigiu à parte traseira do Baobá, segurou firme com as duas mãos a vigorosa bolsa escrotal do aristocrático reprodutor, esticou-a o quanto pôde e, bem rente ao corpo do bicho, decepou-a com a faquinha de ponta.
Dirigindo-se à assistência, abriu um sorriso falho nos dentes e deu testemunho da simplicidade perigosa em que Baobá se danou:
-Vou levar a borsa dele. Se inxiste uma coisa que eu apricêio dum tanto é testico de boi, greiado no fogão de lenha.
₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪₪                                                                                                                          (Publicada em http://www.bloghetto.com.br/ a 22.02.2013)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Evito Remédios


*** 

Ah, isto eu evito. Sei que escribas hipocondríacos, os mais diversos, já abriram suas almas em público, esquecidos da elegância de Castilho ao dizer “tediosa e impolida coisa é falar homem de si próprio”. Em todo caso, cada caso é um caso e, no meu caso, avança o barco na contramão dos maníacos por remédio. Sou e sempre fui avesso ao mundo medicamentoso.

É bem verdade que, há alguns anos, certo angiologista, depois de bem examinar o fluxo sanguíneo em minha carótida, convenceu-me a ingerir, todos os dias, um comprimidinho de AAS, às refeições e, à noite, rebater com outro, chamado Sinvastatina.

Explicou-me o versado em carótida (Honni soit qui mal y pense) que o Ácido Acetil Salicílico inibe a agregação de plaquetas evitando formar trombos nas veias e artérias. Já as Estatinas são inimigas mortais do LDL (o colesterol escroto), perito em obstruções arteriais. Ante tão doutos argumentos, aquiesci nessas duas exceções, mas, como disse, evito tomar remédios.

Não posso negar também – minha honestidade exige a ressalva − que, há uns cinco anos, ouvi de meu cardiologista que pressão acima de 14 é “pressão alta”. São novos parâmetros, diz ele, adotados no mundo da prevenção de infartos e AVCs. Dando-se que minha pressão é useira e vezeira em alcançar os 15, principalmente quando fico “pê” da vida com alguma coisa, recomendou-me ele dois comprimidinhos diários de Losartana Potássica.

A explicação é que a droga impede a retenção de sódio e água no organismo, evitando hipervolemia e a consequente hipertensão arterial. Mesmo boiando no que fosse “hipervolemia”, assustado com algumas sequelas de AVC que já vi por aí, decidi abrir mais uma exceção. O café da manhã vem me ajudando a engolir também esses dois comprimidos. Sem prejuízo, claro, de minha obstinada posição de abominar os fármacos. 

Certamente ficaria nisto não fosse a tendência que tenho à deprê ante as falsetas da vida. E foi num desses dias de alma estomagada que procurei psiquiatra e ele me provou, por “a” mais “b”, que depois de uma “certa idade” as inquietações do espírito são naturais e que, todos, devíamos tomar, de preferência à noite, uma inofensiva cápsula de Cloridrato de Sertralina.

Foi mais longe o esculápio. Disse que as Secretarias de Saúde deveriam colocar Cloridrato de Sertralina nas caixas d`água de todos os contribuintes do IPTU com mais de quarenta anos. É que o miraculoso fármaco inibe a “recaptação da serotonina” – boiei de novo − mandando tudo que é angústia às favas.

Serei injusto com o generoso princípio ativo se negar que, por obra de sua ingestão, venho conciliando velhos sonhos condoreiros da juventude com minha pífia realidade hodierna. Sem abandonar, todavia, meu direcionamento básico, o leitmotiv wagneriano, sagrado, de fugir à química laboratorial. 

Exatamente por isto, enorme foi minha apreensão quando uma terrível dor no joelho passou a crispar meu semblante sempre que me erguia de uma simples cadeira.  O ortopedista diagnosticou artrose avançada, com indicação de prótese no meu joelho direito. Diante do pavor que manifestei por um gonzo metálico dans mon genu, aconselhou-me ele – sem muito entusiasmo − a usar Sulfato de Condroitina associado à Glucosamina, para tentar reconstituir a cartilagem gasta.

Tratamento longo e resultado duvidoso − ressalvou. Pois mesmo esse prognóstico pessimista me pareceu mais simpático que serrar o joelho, jogá-lo aos cães qual mocotó de jegue, substituindo-o por uma dobradiça estilizada. Passei a tomar, todos os dias, às refeições, uma drágea de Condroitina com Glucosamina. Decisão detestável, já se vê, considerada minha rígida resistência a remédios.

Infelizmente, nada evita aquela quadra da vida em que reinam as preocupações. Quando não é com filho é com neto, com esposa, com irmãos, cunhados, amigos virtuais ou companheiros de golo. Um inferno astral. Quando não se perde o sono, perde-se a tranquilidade do sono.

Certa noite o socorro veio pelo telefone. Não paguei consulta. “Não se mate Carlos” − disse-me, drumondianamente, meu cunhado médico. Tome um Olcadil todas as noites, ao deitar-se. É ticket to ride para a paz dos travesseiros! – prescreveu.
Não é que resolve! Não seria um simples Olcadil 2mg que iria comprometer meu propósito inabalável de sempre fugir às medicações.

Transgressões outras não pratico, afora o hábito salutar, herdado de minha mãe, com relação à homeopatia. Considero que Homeopatia escapa ao conceito geral de droga. Similia similibus curantur – são semelhantes curando semelhantes. Para febre, faço uso de Aconitum e Briônia e, para dores lombares,sirvo-me de Acheflan ou Flexive, sendo estes dois últimos da classe dos fitoterápicos, para os quais não vejo razão para minha costumeira intransigência.

O mais importante na vida é escapar com ela. 

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(Publicada  em http://www.bloghetto.com.br/ a 15.03.2013)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Elvira está bem


***                                   

É isto aí, Ascânio. Imagine que hoje pela manhã, ainda à mesa do café, Jalcira e eu falamos de você e Elvira. Principalmente daquele passeio que vocês nos proporcionaram ao litoral do Espírito Santo. Impossível esquecer a praia rasinha de Piúma, onde a gente entrava no mar e ia andando toda a vida na direção do continente africano e nada de molhar o joelho. Água apenas nos tornozelos.

Ora, se me lembro! Vocês foram ótimas companhias. Elvira e eu adoramos aqueles dias agradáveis com jogo de canastra entrando pela madrugada, cerveja e Peroá com mandioquinha frita na praia. Pena que não bisamos a oportunidade.
É a vida moderna, essa desagregadora de afinidades!

Quanto à Elvira, não poderia estar melhor. Foi recepcionada, ontem, por uma grande amiga de solteira, a Antonela, em cerimônia linda, segundo acaba de me relatar o Lulu Batuta.

− Ah, sim, conheço, o seu chofer.             

Exato. Lulu Batuta é baiano do interior que, muito ao contrário do estereótipo atribuído aos baianos, nunca foi chegado a festas, a coisas estrepitosas. Cara circunspecto, sempre na dele, que nem conhece a buliçosa Salvador. Pois foi este homem que ficou fascinado com a toarda que fizeram, ontem, em homenagem a Elvira. Aquela pá de gente ligada, alegre, cantando, dançando... Todo mundo de Abadá branco!  

Claro que a mais empolgada na recepção foi a mãe dela, Da. Lilá, a responsável, aliás, por verdadeiro tributo à pessoa da filha. Incrível, cara! Festa regada a espumantes requintados e canapés da mais erudita facção culinária.

Sinta a criatividade da Sogrona. No auge da confraternização, que até poderia ser dada como fashion – traço incorrigível da personalidade de Da. Lilá −  surgiu ela com uma surpresa. Erguendo, com a mão direita, a toalhinha de linho que cobria uma bandeja de prata espalmada na mão esquerda, descerrou bem na face de Elvira sua tradicional Broa de Fubá feita com banha de porco e erva doce − a guloseima que minha adorável esposa ama de paixão!  

Apoteótico! Não tem outra palavra:  Apoteótico! Todos os convidados batendo palmas, cantando o “Parabéns pra você”, o “Com quem será”... De arrepiar! Do jeito que o Lulu Batuta me contou, cheguei a me emocionar. Verdade, cara, a me emocionar!

− Sabe que, em mim, Broa de Fubá dá azia?

Em mim também, mas Elvira sempre foi vidrada em Broa de Fubá. Criada na fazenda, não é...  Como disse o Batuta, não tinha pra mais nada.

− Pera aí, Ascânio. Vamos chamar nossa conversa à ordem. Pode não ser o que você realmente disse, mas estou entendendo que seu chofer, o Lulu Batuta, teria conduzido Elvira, sua esposa, a um passeio à Bahia, onde atualmente residiria sua sogra. Isto me deixa muito feliz, meu velho!  Apenas confuso porque a notícia recebida lá na repartição é que sua esposa, Elvira, faleceu ontem, de disparada cardíaca, e que o enterro seria daqui a meia hora, exatamente neste cemitério onde estamos.

Não por outro motivo, aliás, aqui estou – pelo visto trazendo condolências precipitadas, por mim e pelos colegas que não puderam vir. Ao chegar, há pouco, não tive dúvida de que  esta seria a mesma razão de sua presença neste velório. Sepultamento que de agora em diante passo a não imaginar de quem seja. Não obstante, contratempos à parte, é um alívio saber que sua mulher está viva, bem de saúde e a passeio na terra de Ivete Sangalo.

Não exatamente viva. Não exatamente na terra de Ivete. Sob  visão profana, sim, Elvira faleceu ontem e nós levaremos seu corpo à sepultura daqui a pouco. O que acabo de lhe passar é a alegria que experimentei, há poucos minutos, ao saber, pelo relato de Lulu Batuta, que minha companheira de tantos anos, apesar de formalmente morta, continua consciente, feliz, em animadas companhias lá no outro plano da existência.

Não pode haver conforto maior, cara. Sempre digo que o ser humano não se conhece; sabemos muito pouco do que somos e do que podemos. O Batuta não me contou de ouvir falar: ele teve uma  visão pessoal da chegada de Elvira aos umbrais do Paraíso!

− O motorista.

Sim, o Lulu Batuta. Ele é também Pai de Santo, entende, num terreiro muito bem frequentado – inclusive por advogados e militares reformados − ali em Vila Narjara. O que ele diz você pode escrever, Galdino.

− Claro, claro.

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(Publicada no LEOPOLDINENSE online e em http://www.bloghetto.com.br/ a 08.023.2013)